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sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA

Seminário: FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA
Contexto, Práticas e Tendências
BID-UCP/PNAFE- Ministério da Fazenda


A FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA
EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Misabel Abreu Machado Derzi
Professora Doutora da Faculdade de Direito da UFMG
Procuradora Geral do Estado de Minas Gerais



Primados fundamentais do Estado de Direito, a segurança jurídica, a liberdade, a proibição de confisco e a capacidade econômica são valores nitidamente protegidos pela Constituição como delimitações aos poderes de fiscalização e administração tributária. A segurança jurídica manifesta-se por meio da legalidade material e formal, da irretroatividade do Direito e da previsibilidade (anterioridade da publicação da lei que institui ou majora o tributo em relação ao exercício financeiro de cobrança). Completa-se com as garantias constitucionais ao direito de propriedade, à proibição do confisco, à proteção da livre iniciativa, da intimidade, da personalidade e do exercício de qualquer profissão ou ofício.

Por outro lado, em um Estado Democrático de Direito, a igualdade e a solidariedade, que lhe são inerentes, exigem leis tributárias justas e exeqüíveis, completadas pela implementação de administração e fiscalização eficientes do cumprimento dos deveres tributários. Os poderes de fiscalização e administração são essenciais para se obter a execução satisfatória das leis tributárias, com que se possa alcançar a manutenção adequada dos serviços públicos essenciais. O esforço executivo, compreendido como a totalidade das condições que garantam uma execução cômoda e econômica, pode ser designado de praticidade. O cumprimento das próprias leis, da forma mais ampla possível, a praticidade, desencadeia uma série de outras questões e limites a seguir estudados.

1. Segurança jurídica e praticidade (leis e regulamentos).

Instituir ou regular um tributo de forma válida, em obediência ao art. 150, I da Constituição, supõe a edição de lei, como ato formalmente emanado do Poder Legislativo da pessoa constitucionalmente competente (União, Estados, Distrito Federal ou Município). Do ponto de vista material, a lei tributária deve ser conceitualmente especificante, ou seja, deve instituir o tributo delimitando um conteúdo material mínimo, indelegável, a saber:
a) a hipótese da norma tributária em todos os seus aspectos ou critérios (material-pessoal, espacial, temporal);
b) os aspectos da conseqüência que prescrevem uma relação jurídico-tributária (sujeito passivo - contribuinte e responsável - alíquota, base de cálculo, reduções e adições modificativas do quantum a pagar, prazo de pagamento);
c) as desonerações tributárias como isenções, reduções, abatimentos, deduções de créditos presumidos, devolução de tributo pago e remissões;
d) as sanções pecuniárias, multas e penalidades, assim como a anistia;
e) as obrigações acessórias em seu núcleo substancial;
f) as hipóteses de suspensão, exclusão e extinção do crédito tributário;
g) a instituição e a extinção da correção monetária do débito tributário.
O Código Tributário Nacional, interpretando corretamente a Constituição, em seu art. 97, traz o rol da matéria privativa de lei, sendo despida de validade a delegação de competência feita pelo Poder Legislativo ao Executivo, cujo objeto se referir a qualquer um dos temas ali elencados. O dispositivo referido contém implícita a exigência de lei para devolução de tributo legitimamente pago, dedução e créditos presumidos, as obrigações acessórias e a instituição ou extinção de correção monetária do débito tributário. O seu §2o. esclarece que "não constitui majoração de tributo, para os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização monetária da respectiva base de cálculo", no pressuposto de que a "faculdade de atualização" para o Poder Público, o dever de o contribuinte suportá-la e o índice aplicável tenham sido previamente estipulados em lei. Essa, aliás, a posição unânime do Supremo Tribunal Federal .
Mas a enumeração da matéria, que configura os conceitos de instituir e aumentar tributo, apenas nos introduz em uma longa série de problemas que a prática jurídica revela, uma vez que o legislador, necessariamente, se utilizará de generalizações, abstrações conceituais, quantificações e presunções, ao disciplinar os tributos que compõem o sistema tributário nacional.
Essas generalizações e abstrações de que se socorre o legislador formam tipos, abertos e fluidos ou conceitos determinados ou determináveis de forma mais rígida? O intérprete e o administrador interpretarão a lei de forma mais fluida, tipologicamente, ou de forma mais rígida, conceitualmente?

O método utilizado no Direito Tributário predominantemente é classificatório conceitual (não o tipológico), pois o analista não admite as transições fluídas entre os tipos ou a graduabilidade das notas intratipo; nesse caso, ele tenderá a concentrar em uma ou duas notas fixas e rígidas, irrenunciáveis, as características de cada tipo, assim como a excluir a espécie que não se subsumir no conceito. (V. tratamento completo do tema em nosso Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo. Ed. RT, 1986).

Tipo e conceito são movimentos em conflito no Direito, manifestados na estrutura aparente do ordenamento, mas que, na realidade, correspondem a tensões internas mais profundas. Essas tensões encontram-se nas relações de interdependência entre os valores jurídicos básicos que se manifestam, concretamente, em bens e interesses juridicamente protegidos ou direitos fundamentais e complexo de garantias que os assegurem. De um lado, encontramos o tipo como ordem rica de notas referenciais ao objeto, porém renunciáveis, que se articulam em uma estrutura aberta à realidade, flexível, gradual, cujo sentido decorre dessa totalidade. Nele, os objetos não se subsumem mas se ordenam, segundo método comparativo que gradua as formas mistas ou transitivas.
De outro lado, observamos os conceitos fechados que se caracterizam por denotar o objeto através de notas irrenunciáveis, fixas e rígidas, determinantes de uma forma de pensar secionadora da realidade, para a qual é básica a relação de exclusão ou ... ou. Por meio dessa relação, calcada na regra da identidade, empreendem-se classificações com separação rigorosa entre as espécies.
O tipo propriamente dito, por suas caraterísticas, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade-justiça individual, o da funcionalidade e permeabilidade às mutações sociais. Em compensação, com o seu uso, enfraquece-se a segurança jurídica, a legalidade como fonte exclusiva de criação jurídica e a uniformidade.
O conceito determinado e fechado (tipo fechado no sentido impróprio), ao contrário, significa um reforço à segurança jurídica, à primazia da lei, à uniformidade no tratamento dos casos isolados, em prejuízo da funcionalidade e adaptação da estrutura normativa às mutações sócio-econômicas.
Por tais motivos, a força da segurança jurídica (legalidade, irretroatividade e previsibilidade) tem determinado a prevalência do modo de raciocinar rígido no Direito Tributário e de interpretar as normas que o compõem de forma conceitual, determinada e fechada.

O fenômeno acima, de prevalecimento do modo de pensar conceitual, por conceito determinado, tem reflexos imediatos na apuração e cobrança dos tributos, que se desenvolve em atividade administrativa plenamente vinculada.

Praticidade.
Os princípios da igualdade e da capacidade contributiva são abrandados por meio do princípio da praticidade ou praticabilidade. Por meio desse último princípio devem ser evitadas as execuções muito complicadas da lei, especialmente naqueles casos em que se deve executar a lei em massa. Mas indiretamente, como observa K. TIPKE, também o princípio da praticidade serve ao da igualdade, no sentido de generalidade, pois leis que não são praticamente exeqüíveis, não podem ser aplicadas igualmente a todos. E ainda lembra TIPKE que o princípio da praticidade, como princípio técnico primário, não deve ser valorado da mesma forma que os princípios éticos (igualdade e capacidade contributiva), embora os limites entre uns e outros até hoje não estejam bem definidos. (V. Steuerrecht. Köln. Otto Schmidt KG, 1983, p. 35).

Os estudos mais aprofundados sobre as técnicas relacionadas à praticidade, que estão voltadas a possibilitarem a execução simplificada, econômica e viável das leis (entre elas a tipificação) foram desenvolvidos pelos juristas alemães, nas últimas décadas. Dentre os trabalhos mais importantes, citemos a obra de HANS WOLFGANG ARNDT (Prakticakabilität und Efficienz, 1a. Köln, Otto Schmidt KG, 1983) ; JOSEF ISENSEE. (Die Typsierende Verwaltung. 1a. Berlin. Duncker & Humblot, 1976); EBERHARD WENNRICH. (Die Typsierende Betrachtungsweise im Steuerrecht. 1a. Düsseldorf, Instituts der Wirtschaftsprüfer, 1963), além de numerosos artigos e capítulos de livros. Entre nós, leia-se MISABEL ABREU MACHADO DERZI. (Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo. RT. ed. 1988).

“Praticidade é o nome que designa a totalidade das condições que garantem uma execução eficiente e econômica das leis”. ( Cf. ISENSEE, op. cit. p. 162-3).

A praticidade é um princípio geral e difuso, que não encontra formulação escrita nem no ordenamento jurídico alemão, nem no nacional. Mas está implícito, sem dúvida, por detrás das normas constitucionais. Para tornar a norma exeqüível, cômoda e viável, a serviço da praticidade, a lei ou o regulamento muitas vezes se utiliza de abstrações generalizantes fechadas (presunções, ficções, enumerações taxativas, somatórios e quantificações) denominadas por alguns autores de “tipificações” ou modo de raciocinar “tipificante”. A principal razão dessa acentuada expressão da praticidade reside no fato de que o Direito Tributário enseja aplicação em massa de suas normas, a cargo da Administração, ex officio, e de forma contínua ou fiscalização em massa da aplicação dessas normas (nas hipóteses de tributos lançados por homologação).
É preciso considerar exatamente as esquematizações, abstrações e generalizações (tipificações em sentido impróprio e conceitualizações) que a norma inferior, ao executar a superior, em nome da praticidade, faz ou pode fazer. Por essa razão, exatamente no Direito Tributário, onde compete a órgão estatal executar a norma em massa ou fiscalizar a sua execução, é que se coloca de forma mais aguda a questão da praticidade e de seus limites.

É exemplo de norma constitucional brasileira, ditada em nome da praticidade, o art. 150, §7o., introduzido pela Emenda Constitucional no. 03/1993, que dispõe:
“A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

Pretendeu a norma legitimar as presunções de ocorrência de fato gerador futuro, que se dão na substituição tributária chamada “para frente”, ou nas antecipações de imposto, cobradas em geral, em nome dos interesses arrecadatórios da Fazenda, de simplificação da execução das leis e da fiscalização e do combate à evasão.
Sem dúvida, a permissão constitucional expressa, ditada em nome da praticidade, representa um abrandamento da igualdade e da capacidade contributiva, embora não represente rompimento algum com a legalidade, ao contrário, poderá exterminar os numerosos casos de instituição de substituição tributária no ICMS, sem lei, por meio de norma regulamentar. Exemplifiquemos com casos de simplificação de execução das leis no Direito nacional.

1.1. Tipificação imprópria ou a criação de padrões rígidos. (Casos no Direito Tributário brasileiro).

Como disse WENNRICH, “o modo de pensar tipificante não está nas leis. É criação da jurisprudência”. (Cf. op. cit. p. 1).
Na verdade, esse é, de fato, o setor (em especial, no Brasil, os regulamentos, instruções e pareceres normativos) onde prolifera o uso de técnicas destinadas a simplificar a execução das normas legais. Entretanto, pelo menos em nosso País, devemos também considerar as presunções que são padrões e esquemas generalizantes, contidas na lei e que se destinam a facilitar a execução de norma geral superior ou a facilitar a arrecadação do tributo. Na medida em que norma inferior é, ao mesmo tempo, criação e execução de norma superior, a lei que a veicula liga-se ao princípio da praticidade, tendendo:
· a facilitar a execução daquela hierarquicamente superior e
· a simplificar, por antecipação, a aplicação dos próprios preceitos que edita.
Especialmente no Brasil, é de se refletir sobre o tema, uma vez que a Constituição Federal, ao regular o sistema tributário, desce a pormenores que acabam por delimitar materialmente a competência legislativa dos entes estatais tributantes. Além disso as leis complementares de normas gerais, abaixo da Constituição, mas acima das leis ordinárias acrescem outros requisitos de validade. É preciso, então conferir e aferir, dentro desse quadro, a validade do modo de raciocinar “tipificante”, assim chamado porque, em geral, na eleição dos recursos que objetivam alcançar segurança jurídica, uniformidade, garantia, fortalecimento do crédito tributário e praticidade, o legislador se vale do tipo, deduzindo-o daquilo que é padrão usual, médio ou freqüente (embora, via de regra, o desnature, transformando-o em conceito fechado ou quantificando-o).
Interessa-nos, dentro das normas limitadoras da competência tributária, destacar apenas casos de transformações por que passam as normas constitucionais quando simplificadas, reduzidas ou ampliadas nas leis que as executam, assim como a execução simplificadora que normas administrativas empreendem nas leis que o Poder Executivo deve aplicar. Tal execução simplificadora, que se dá no plano vertical, seja ao nível legal, seja regulamentar, tende à inconstitucionalidade.
Representam técnicas simplificadoras da execução, legalmente previstas ou autorizadas:
· o lançamento do imposto por estimativa, segundo o qual não são levadas em conta as operações efetivamente realizadas, mas estabelece-se, administrativamente, a média presumível dessas operações, como base para a cobrança do tributo;
· a substituição tributária chamada “para frente” na qual se presume realização de operação de circulação futura, de acordo com o usual e ordinário, e segundo base de cálculo estimada, embora, muitas vezes, ela possa não ocorrer (por perecimento ou extravio da mercadoria por exemplo), ou ocorrer com base em preços bastante diversos daqueles previstos ;
· regimes especiais, em que se delegam ao Executivo a criação de pautas de valores em substituição aos preços reais das operações realizadas, etc.
Exatamente em nome da praticidade, nossos tribunais têm dado pela legitimidade do lançamento do imposto por estimativa, ou da substituição, uma vez instituídos em lei. Esses mecanismos destinados a simplificar a execução e a fiscalização, assim como a evitar a evasão ilícita do tributo, sem dúvida alteram norma constitucional, que diz incidir o imposto sobre operação de circulação, devendo ser deduzido do tributo a pagar o valor do montante cobrado na operação anterior. É que tornam presunção o que está assentado, na Constituição, como realidade, em especial a substituição tributária, que desencadeia o surgimento da obrigação sem a ocorrência da hipótese, sem a concretização da capacidade econômica, consagrada no art. 145, §1o.. Pode norma hierarquicamente inferior converter em presunção ou ficção o que dispõe norma de nível superior ? Aceitando-se, no entanto, a legitimidade da presunção, quais serão, não obstante, seus limites?
O art. 150, §7o., da Constituição veio exatamente com a pretensão de legitimar esses e outros casos, ocorrentes na prática tributária nacional. Mas, evidentemente, o mesmo dispositivo exige lei expressa.
Entretanto, outros notáveis exemplos podem ser colhidos, tanto no âmbito federal, como estadual e municipal, constantes de regulamentos do Executivo ou outras normas administrativas internas, tendentes a simplificar a execução de uma lei. Em tais casos, é irrelevante, nas hipóteses aventadas, que a lei mesma tenha autorizado a técnica simplificadora. O que importa é que a simplificação advém de outros instrumentos que não a própria lei, em franco exercício de delegação e, portanto, sem possibilidade de enquadramento no §7o. do art. 150 da Constituição de 1988. Regulamentos, instruções, orientações e demais preceitos normativos da Administração passam a estabelecer presunções, tendo como base um padrão médio ou esquema que preside a adoção dos valores. Esses valores são genericamente estabelecidos, são esquemas que desconsideram as diferenças individuais relevantes. A tendência jurisprudencial será considerá-los inconstitucionais e ilegais.
Igualmente nesses casos, embora o tipo sócio-econômico muitas vezes tenha servido de convencimento ao administrador, é juridicamente transformado em teto ou valor numericamente definido, que atua, não raramente, como presunção iuris et de iure. Citemos os exemplos mais representativos, embora outros possam ser considerados:
· as pautas de valores, fixadas pelo Poder Executivo, que estabelecem o valor tributável, com base no preço médio, para hipóteses de incidência do imposto sobre operações de circulação de certas mercadorias (gado, café, minerais etc.,). A substituição tributária progressiva ou “para frente” é uma derivação da pauta de valores;
· as tabelas ou quadro de valores de imóveis urbanos, que servem de base para cálculo do imposto municipal sobre a propriedade predial e territorial urbana;
· as tabelas de valores de veículos automotores, que estabelecem o valor venal dos veículos usados, com base no caso padrão ou valor médio para o imposto estadual sobre a propriedade de veículos automotores;
· lançamentos que se baseiam em índices artificiais de produtividade (aplicados especialmente no ICMS), deduzidos a partir do levantamento dos insumos, matéria-prima e produtos intermediários adquiridos pelo produtor, segundo a média da produtividade existente para o setor.
Como já alertamos, uma vez que tais esquematizações “tipificantes” são presunções de base de cálculo ou mesmo de ocorrência de fatos geradores não estabelecidas em lei, revestem-se de inconstitucionalidade já reconhecida pelo Poder Judiciário, mas ainda são comuns e constantemente tentadas pela Administração Fazendária.

1.2. O que é o modo de pensar “tipificante”.

O modo de pensar, impropriamente chamado tipificante, é uma técnica (ou uma das técnicas) a serviço da praticidade. Como já registramos, destina-se a viabilizar ou simplificar a execução das normas jurídicas.
Essencialmente, tipificar significa criar tipos. Esse modo de pensar é dito tipificante, porque, em um trabalho precedente do aplicador da lei, são extraídas as características comuns à maior parte de uma multiplicidade de fenômenos, em tese passíveis de enquadramento na norma e é formado o tipo (abstração-tipo), esquema ou padrão. Muitas vezes, a Administração (ou a jurisprudência) é dirigida pelo primeiro caso - Leitfall - que passa a figurar como cliché, na pressuposição de que representa o caso normal, comum ou padrão. (Cf. J. ISENSEE, op. cit. p. 59).
O “tipo”, esquema ou padrão - quer resulte das características comuns, médias ou freqüentes de uma multiplicidade de fenômenos, quer de um caso isolado erigido como modelo do normal - nesse processo, altera o programa da norma e substitui os fatos isolados por uma presunção. Daí resultou a expressão, atribuída pela doutrina estrangeira, de modo de pensar “tipificante”, que serve para designar essa técnica de simplificar a execução da lei.
A designação aludida, no entanto, não leva à formação de verdadeiros tipos, no sentido técnico que lhe atribui a Metodologia. No caso em tela, tipo pode haver, no plano pre-jurídico.
Entretanto, desse modo de pensar não resultam verdadeiros tipos jurídicos, como ordens abertas, graduáveis, transitivas, de características renunciáveis. Nesse processo, ao contrário, são produzidos rígidos padrões, esquemas fixos, via de regra numericamente definidos, não raro funcionando como presunções iuris et de iure.
A criação de tipos propriamente ditos é meio que abstrai e generaliza, assim como a criação de presunções através de padrões e esquemas, embora tanto um como outro sejam processos inconfundíveis. Mas em razão daquilo que têm de similar ou comum, inadequadamente, a doutrina alemã passou a designar o fenômeno destinado a simplificar a execução da lei fiscal, de “tipificante”.
Ora, o objetivo da padronização simplificadora é exatamente evitar a aplicação individual do Direito (que o tipo, no sentido próprio do termo, propicia), estabelecendo, através da uniformidade rígida e fixa, a aplicação da lei a milhares de casos.
Não obstante, como já observamos, quando tais “tipificações”, buscando praticidade e simplificação da execução das leis, vêm previstas em normas administrativas do Executivo tendem à inconstitucionalidade. Igualmente, mesmo previstas em lei, todas as vezes que afrontam a realidade e ferem a capacidade econômica do contribuinte estão eivadas de inconstitucionalidade.

1.3. Justificações.

Quando o modo de pensar “tipificante”, por meio do qual se criam presunções, ficções, pautas de valores, somatórios, etc., vem fixado em lei, a não ser provando-se a incompatibidade da lei com algum princípio constitucional superior, como a capacidade contributiva, em geral se considera adequado e justificado por outro princípio, o da praticidade.
Mas o tema já se apresenta problemático quando esse modo de pensar se evidencia em normas administrativas ou na jurisprudência. As opiniões se dividem.
Apesar de a maior parte da doutrina tedesca considerar juridicamente inaceitável esse modo de pensar, não lhe faltam adeptos. Segundo WENNRICH, acolhem o impropriamente chamado modo de pensar tipificante: BALL, HANRATHS, HOERES, HEIGL e KLEIST, WALLIS, KLAUSING, MAUNZ, SPITALER, SCHMIDT, ZITZLAFF, WEBER, além de ISENSEE e ARNDT. São as seguintes as justificações desse modo de raciocinar:
· a defesa da esfera privada, evitando a ingerência indevida de órgãos públicos no círculo privado da pessoa;
· a uniformidade da tributação, obtendo-se um tratamento igual para todos os fatos (até mesmo para os desiguais), evitando-se que decisões díspares, critérios diferentes e resultados contraditórios sejam adotados;
· o estado de necessidade administrativo indica que tais práticas são inevitáveis, pois existe uma acentuada desproporção entre a incumbência legalmente atribuída à Administração para a execução e fiscalização da aplicação das normas tributárias e a capacidade e os meios disponíveis de que dispõem os órgãos fazendários para prestar o serviço. Cria-se, então, um estado de necessidade administrativo. Invoca-se o princípio rebus sic stantibus, pois a capacidade financeira da Administração não é suficiente para satisfazer a prestação a que, por lei, o Poder Executivo estaria obrigado. Diante do estado de necessidade administrativo, da oposição entre legalidade e praticidade, para doutrinadores como ARNDT e ISENSEE, o modo de pensar que denominam “tipificante” aparece como uma tentativa de solução do impasse. A criação de pauta de valores ou padrões rígidos atribui prevalência à quantidade sobre a qualidade, afrouxando o princípio da legalidade, em nome da economia administrativa e substituindo a aplicação da norma ao caso individual concreto pela aplicação da norma ao caso “normal”, esquemático.
De acordo com ARNDT, dá-se um aparente conflito entre o princípio da adequação da norma ao Tatbestand , contido no art. 20, §3o.. da Constituição Federal alemã e o modo de pensar padronizante. Em realidade, a Constituição autoriza a conclusão de que a praticidade se sobrepõe, pois quem pensa a legalidade a ponto de exigir o esgotamento do potencial de diferenciação, mesmo diante de uma capacidade administrativa deficitária, consagra a primazia do fiat justitia, pereat mundus, transformando o princípio do summus ius em summa iniuria.(Cf. op. cit. p. 82).

1.4. Principais objeções.

A maior parte da literatura jurídica alemã rejeita o uso do modo de pensar que leva à criação administrativa de esquemas e padrões, sem lei, destinados a simplificar a execução da lei fiscal.
Segundo WENNRICH, entre outros, rejeitam esse método: BAUERLE, BLAU, KOPPE, BÜHLER, FLUME, FRIEDRICH, HARTUNG, HAUBMANN, LION, OSWALD, ROSENDORF, SENF, VOGT, WACKE e SCHIFFBAUER. (Cf. op. cit. p. 77-82).
São as seguintes as principais objeções feitas pela doutrina:
· ofensa à adequação à lei, que é imperativo geral do Estado-de-Direito, especialmente dirigido aos Poderes Executivo e Judiciário;
· ofensa ao princípio da divisão de poderes, pois o modo de pensar que estabelece padrões, esquemas ou pauta de valores, cria presunções que não são mera interpretação, mas retificação e modificação da própria lei, enfraquecendo-se o Poder Legislativo, que perde o monopólio da produção legislativa;
· ofensa à indelegabilidade de funções, pois compete privativamente ao Poder Legislativo regular o tributo;
· ofensa à uniformidade de encargos fiscais e à igualdade, pois se o legislador tratou o factualmente desigual de modo desigual, de acordo com sua peculiaridade, a administração converte em igualdade aquilo que é desigualdade, desprezando as características individuais, juridicamente relevantes. (Cf. SCHIFFBAUER. Die Typisierungs Theorie im Steuerrecht. StbJb, 1953-4, p. 177);
· ofensa à capacidade econômica e ao princípio da realidade, pois o Direito Tributário segue o princípio da realidade e deve atingir as reais forças econômicas do contribuinte.

1.5. Conclusões.
Pensamos, como TIPKE, que a praticidade deve inspirar a elaboração das normas jurídicas, sendo um princípio implícito e difuso na Constituição, mas sem qualquer primazia sobre os princípios éticos que norteiam o sistema, como justiça, capacidade contributiva e igualdade. Por isso, os dispositivos constitucionais ditados em nome da praticidade, como o art. 150, §7o., devem ser interpretados com essas limitações.
A praticidade deve ser atendida e a execução das leis deve ser simplificada, porém sob a égide dos seguintes princípios:
· legalização do modo de raciocinar padronizante, transferindo-se para a lei a fixação das presunções, dos somatórios, pautas de valores, substituição tributária e de outras técnicas que se destinam a preparar a execução simplificada da lei em massa;
· a lei que consagra presunções e pautas de valores não poderá ferir o princípio da capacidade contributiva, nem a igualdade, de tal sorte que o caso marginal ou atípico merecerá consideração especial, permitindo-se sempre a refutação da presunção pela demonstração da prova em sentido contrário;
· devem ser afastadas as presunções “ materiais” que geram efeitos iuris et de iure, assim como as ficções de fatos geradores ou de bases de cálculo;
· por razões técnicas, não sendo aconselhável a legalidade rígida do modo de raciocinar administrativo que simplifica a execução por meio de presunções, esquemas e padrões, a declaração de vontade do contribuinte, caso a caso, deve substituir a vontade da lei, utilizando-se, para isso, o lançamento por homologação;
· mas a vontade do contribuinte pode e deve ser direcionada por orientações, limites e valores administrativamente estabelecidos que obstem as evasões ilícitas.
O lançamento por declaração e por homologação são uma alternativa para a aplicação das leis em massa, à qual tem recorrido o legislador no imposto sobre a renda, a circulação e a produção. São diversas as vantagens dessas espécies de lançamento, uma vez que a vontade do contribuinte supre e dispensa a exaustiva investigação do fato concreto por parte da Fazenda Pública, a qual só em casos especiais (omissão, falsidade, dolo, fraude, má fé....) procede ao levantamento das peculiaridades do caso individual.
Em se tratando, no entanto, de impostos incidentes sobre a propriedade de bens móveis ou imóveis, deve-se evitar a evasão ilícita, direcionando-se a declaração de vontade do contribuinte. Como já acontece no imposto territorial rural, o próprio contribuinte deveria declarar o valor do bem ou do metro quadrado e outros dados úteis à atualização cadastral. As pautas, plantas ou mapas de valores genéricos, quer estejamos falando de bens imóveis, quer móveis, devem atuar como piso mínimo. Assim, declarando o contribuinte valor inferior ao da planta ou tabela, sujeitar-se-á à exaustiva investigação administrativa do caso individual, para uma fiel e completa aplicação da lei. Essas plantas ou pautas dispensariam a aprovação legislativa pois não se destinam a atuar como presunções, mas apenas a direcionar a declaração de vontade do contribuinte.
É bom repetir que as técnicas que visam a facilitar a fiscalização, a arrecadação e coibir a evasão são perfeitamente admissíveis, exceto quando rompem com a capacidade econômica. Nos impostos incidentes sobre o consumo, da modalidade do IPI e do ICMS, o modo de raciocinar “tipificante” não pode ferir a neutralidade, que lhes é inerente, como ocorre no caso da substituição tributária “para frente”. Não raramente, criam-se preços arbitrários ou fictícios (pautas), interfere-se na formação dos valores de mercado, distorce-se a concorrência, ofende-se a capacidade contributiva do contribuinte e desnatura-se profundamente o perfil constitucional do tributo.
De modo algum se nega que o legislador possa criar presunções jurídicas por razões as mais diversificadas (praticidade, prevenção da sonegação, comodidade, etc.). Mas nunca iuris et de iure, contra o princípio da realidade e da capacidade econômica. O que se afirma apenas é que, em qualquer caso, seja nas ficções e presunções, seja no estabelecimento de somatórios, pautas, tipos ou conceitos fechados, o legislador tem de ser fiel à Constituição, aos seus valores e princípios. Sua liberdade está restringida por aqueles valores e princípios, sua discricionariedade não se confunde com o arbítrio de um querer qualquer, que não encontra justificação naquelas normas superiores da Constituição. A praticidade não tem primazia sobre a justiça.

2. Segurança jurídica e praticidade no lançamento, na cobrança e na fiscalização.

Crédito regularmente constituído significa, como se sabe, aquele formalizado pelo lançamento, ato administrativo que o torna líqüido e exigível.
O agente da Administração fazendária, que fiscaliza e apura os créditos tributários, está sujeito ao princípio da indisponibilidade dos bens públicos e deverá atuar aplicando a lei - que disciplina o tributo - ao caso concreto, sem margem de discricionariedade. A renúncia total ou parcial e a redução de suas garantias pelo funcionário, fóra das hipóteses estabelecidas na Lei 5172/66, acarretará a sua responsabilização funcional. Mas a Lei 5172/66 (de conformidade com a Constituição), contendo normas gerais, ao dispor sobre as causas extintivas, suspensivas ou excludentes do crédito tributário, em regra dita apenas o quadro, os princípios norteadores ou os parâmetros dentro dos quais deverá atuar o legislador ordinário da pessoa estatal, que concede a moratória (causa suspensiva), a remissão, a compensação (causas extintivas), a anistia ou a isenção (causas excludentes). Trata-se de manifestação da competência concorrente, disciplinada pelos art. 24 e 146 da Constituição. (Ver os excelentes comentários de RAUL MACHADO HORTA sobre a competência concorrente, como tendência prevalente da forma federal de Estado na atualidade. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte, Del Rey, 1995, p. 399-421). Nesse caso, a Administração, no lançamento, fiscalização e cobrança dos tributos, observará as normas estabelecidas pelo Código Tributário Nacional, somente modificáveis por meio de lei complementar, e mais aquelas leis próprias das pessoas políticas, competentes para instituir o tributo, que sejam específicas para a concessão da moratória, da remissão, da compensação, da anistia ou da isenção.

2.1. A preferência pelo lançamento por homologação.
Os tributos lançados por meio de homologação tácita ou expressa são cada vez mais numerosos. A preferência do legislador por essa modalidade de procedimento, em que se transferem ao contribuinte as funções de apurar e antecipar o montante devido, antes de qualquer manifestação por parte da Fazenda Pública, mais freqüente em toda a parte, levou alguns juristas, como FERREIRO LAPATZA, a denunciar uma espécie de “privatização da gestão tributária”. Privatização pois que o contribuinte não se limita a fornecer dados e fatos relevantes, por meio de uma declaração, como ocorre no procedimento previsto no art. 147, em que a Fazenda Pública, com base nos dados fornecidos, efetivamente lançará o tributo, dele notificando o sujeito passivo. O lançamento por homologação se distingue dos demais em razão de o contribuinte ter o dever de levantar os fatos realizados, de quantificar o tributo e recolhê-lo aos cofres públicos no montante devido, no tempo e forma previstos em lei, sem aguardar qualquer exame prévio da Administração fazendária. E os eventuais erros cometidos pelo sujeito passivo, posteriormente descobertos pelo Fisco, configuram descumprimento da obrigação, sendo sancionáveis na forma da lei.

Muitas são as razões, de ordem econômica, política ou jurídica, justificadoras do fenômeno, como o despreparo do aparato administrativo de cobrança, o seu elevado custo, a impossibilidade de se conhecerem os dados próprios do contribuinte, a agilização na arrecadação dos tributos, a proteção da intimidade, etc. ESTÉVÃO HORVATH, autor de magistral tese de doutoramento, defendida na Universidade Autónoma de Madrid, explica com toda propriedade:

“Já escrevia BLUMENSTEIN que o “autolançamento” se aplica geralmente só naqueles impostos nos quais a intervenção administrativa seria inadequada à natureza das coisas. (System des Steuerrechts, apud RUIZ GARCIA. La liquidación.......cit, p. 274, nota 20). Deveria ser esta a orientação seguida por todas as legislações que se ocupam do tema. Com efeito, o tipo de lançamento a ser aplicado a um tributo deve ter conexão com seu pressuposto fático, pois podem existir tributos nos quais o lançamento administrativo seja difícil de se efetivar por não dispor a Administração dos dados necessários, assim como existirão outros nos quais o contribuinte sozinho não conseguiria obter o montante devido.
.....................................................................
Acrescentamos a estas considerações aquela segundo a qual o princípio implícito da praticidade do ordenamento jurídico procura uma aplicação mais cômoda, simples, econômica e funcional da lei tributária. A professora brasileira MISABEL DERZI define a praticidade como “o nome que se dá a todos os meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de simplificar e viabilizar a execução das leis”. (V. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. Ed. RT, São Paulo, 1988). Isso significa apenas que um tributo deve ser lançado da forma que seja mais compatível com sua natureza intrínseca, para que a lei tributária possa ser aplicada concretamente do modo mais econômico e eficaz.
Não obstante, parece que os legisladores modernos acham que todos (ou quase) todos os tributos existentes são compatíveis com o lançamento por homologação, já que esta é a forma de lançamento prevista na imensa maioria dos tributos atualmente vigentes. Parece-nos que isso pode ser feito, sempre que se assegure aos contribuintes formas de corrigir os erros por ele eventualmente cometidos em sua tarefa “lançadora”.
(Cf. La Autoliquidación Tributaria. Tese de doutoramento apresentada à Universidade Autônoma de Madrid, 1990-1991, inédita, p. 71-73).

De fato, tem razão ESTÉVÃO HORVATH. O legislador supõe a compatibilidade de quase todos os tributos, pelo menos os mais importantes, com o lançamento por homologação (imposto sobre a renda, sobre operações de circulação de mercadorias e serviços, sobre produtos industrializados, sobre prestações de serviços das pessoas jurídicas, contribuições especiais em geral, etc), na prática realizando uma transferência do custo das atividades de gestão administrativa para o contribuinte.

Não obstante, no Brasil, na Espanha ou na Alemanha, aqueles tributos que incidem sobre a propriedade ou a posse de bens imóveis, ou ligados de alguma forma à avaliação de bens imobiliários, submetem-se a procedimentos em que é necessária a intervenção da Administração, quer por meio de lançamentos de ofício ou com base em declaração. (Ex. o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, o imposto sobre a propriedade territorial rural, imposto sobre a transmissão de bens por ato intervivos ou mortis causa, contribuição de melhoria). A possível diversificação de critérios, utilizáveis pelos contribuintes, e a necessidade de racionalizar isonomicamente os tributos podem explicar, em parte, a rejeição - presente nesses casos - feita pelo legislador ao lançamento por homologação.

2.2. Os deveres de colaboração com a Administração.

O sujeito passivo e mesmo terceiros, de alguma forma relacionados com a obrigação tributária, têm o dever de colaborar com a Administração. Esse dever que está estabelecido de forma difusa na Constituição, depende, não obstante, de expressa regulação legal, como estatui o art. 5o. par. II da mesma Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Em princípio, respeitados os demais dispositivos da Carta, o legislador tem liberdade relativamente ampla para disciplinar e impor tais deveres. Em tese inexiste um direito de recusa do contribuinte ao cumprimento do dever.

É no caso dos tributos lançados por homologação, como vimos, que se manifestam em maior grau, extensão e onerosidade os deveres de colaboração com a Administração Fazendária. O procedimento inerente ao lançamento por homologação transfere ao sujeito passivo toda a responsabilidade pelo levantamento dos dados, apuração dos fatos e mesmo pela aplicação correta da lei ao caso concreto, o que supõe, inclusive, a compreensão adequada do Direito. O descumprimento de tais deveres acarreta conseqüências sancionatórias graves para o sujeito passivo e imposição de elevadas multas, por isso ele absorve grande parte de seu tempo na satisfação das pretensões tributárias ou se socorre comumente de especialistas (contadores, advogados e consultores), cuja assistência técnica eventual ou regular configura um ônus adicional considerável. A oportunidade para a reparação de quaisquer erros, cometidos pelos obrigados em suas informações e declarações, voluntários ou decorrentes do desconhecimento da lei ou dos fatos, é assim muito importante. Segundo o art. 138, a denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora (sem quaisquer sanções) exclui a responsabilidade pelo ilícito praticado. A exclusão da responsabilidade tributária acarretará, sem dúvida, a exclusão da responsabilidade penal, se for o caso. (Ver MISABEL DERZI. Crimes Contra a Ordem Tributária. In Repertório IOB Jurisprudência. no. 13/95, p. 212-217).

A preocupação nuclear, nessa questão dos deveres de colaboração, deve enfocar ainda os limites dos poderes de fiscalização e investigação da Fazenda Pública, que encontram também claras fronteiras nos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes em geral.

Enfim, resta saber se existe um direito de recusa do contribuinte ou de terceiro (que não é parte naquela relação tributária) oponível à regra, pois a regra é o dever de colaboração com a Administração. Em princípio esse dever somente pode ser afastado :
· se ele não se baseia em lei, posta pela pessoa competente, sendo portanto despido de fundamento legal;
· se ele não é pertinente, seu cumprimento provocando desvantagens para o atingido sem esclarecer ou demonstrar o fato jurídico essencial;
· se ele é excessivo ou oneroso para a parte, quando outros meios mais fáceis e baratos são igualmente eficazes;
· se o cumprimento da exigência administrativa importa em violação de outro direito fundamental, em especial a proteção da intimidade;
· finalmente, se a exigência não é cumprível pela parte ou terceiro, pois a informação não pode ser dada de conhecimento próprio, dependendo de documentos originais aos quais o colaborador não tem acesso (ad impossibilia nemo tenetur).

No caso de terceiros, obrigados a informar ou fornecer dados próprios do contribuinte úteis ao lançamento, a recusa pode estar legal ou constitucionalmente fundamentada na proteção da intimidade e no segredo profissional - inclusive bancário. A matéria encontra regência no art. 5o., X e XII da Constituição de 1988; no Código Comercial, art. 17 a 19; no Código Civil, art. 144; no Código de Processo Penal, art. 207; no Código Penal, art. 325 e 154; na Lei 4595, de 1964, que regula o dever legal de observância do segredo bancário - art. 37 e 38 - com graves penas à infringência do sigilo; na Lei 4728, de 1965, que disciplina o mercado de capitais; no Código Tributário Nacional, art. 195 e 197; na Lei 7492, de 1982, que define os crimes contra a ordem financeira, impondo penalidades à violação do sigilo bancário e na Lei Complementar no. 75, de 20 de maio de 1993 e Lei 9.613, de 03 de março de 1998.

Enfim, o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem, nos países ocidentais em geral, é a razoabilidade das exigências administrativas. (Ver na Alemanha, KLAUS TIPKE. Steuerrecht. Ein systematischer Grundriss. 9 V. Köln. Otto Schmidt KG., 1983, p. 559-560).

Em nosso País, a jurisprudência, de longa data, tem afastado como ilegítimas as seguintes medidas de constrangimento ao pagamento, tomadas pela Fazenda Pública: penhora de estabelecimento, penhora de faturamento ou de um percentual sobre o faturamento, fechamento de estabelecimento, recusa pela Administração de fornecimento de talonários fiscais, pedido de falência ou de prisão sem fundados indícios de crime. Em regra, baseiam-se tais decisões na ofensa aos princípios constitucionais da liberdade de comércio, no livre acesso ao Poder Judiciário e na moralidade administrativa.

5. O sigilo bancário.

Segundo a Constituição Federal,

“Art. 5º...............
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XII- é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual.”

O sigilo de dados, pela primeira vez, veio integrar o rol dos direitos e garantias individuais, na Constituição de 1988 (art. 5o. XII). Configura, segundo a doutrina, desdobramento do direito fundamental à privacidade (art. 5o. X), o qual integra a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 - art. 12. Opõe-se, de certa forma, ao público-político, que é dominado pelos princípios da transparência, da publicidade e da igualdade; o social-privado, na acepção atual, rege-se pelo princípio da diferenciação, da exclusividade e da faculdade de resistir ao devassamento, de negação de comunicação.

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., citando PONTES DE MIRANDA, explica que o objeto, o bem protegido no direito à privacidade e no sigilo de dados é

“a liberdade de ‘negação’ de comunicação de pensamento. O conteúdo, a faculdade específica atribuída ao sujeito é a faculdade de resistir ao devassamento, isto é, manter o sigilo (da informação materializada na correspondência, na telegrafia, na comunicação de dados, na telefonia). A distinção é importante. Sigilo não é o bem protegido, não é o objeto do direito fundamental. Diz respeito à faculdade de agir (manter sigilo, resistir ao devassamento), conteúdo estrutural do direito.”
(Cf. Sigilo de dados: O Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado. In Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, no. 1, ps. 141-154).

Com propriedade, observa ARNOLD WALD:

“O sigilo bancário se enquadra no conceito mais amplo do segredo profissional, que tem merecido uma proteção muito ampla, ensejando sua violação caracterização como crime (art. 154 do Código Penal).
..........................................................
“o cliente não quer divulgar determinados fatos que, hoje, são reconhecidos como constituindo um reflexo e uma projeção de sua personalidade;
“o profissional, por sua vez, considera a discrição como elemento do seu fundo de comércio e, por outro lado, os nomes dos clientes constituem um verdadeiro segredo comercial e integram o seu fundo de comércio.
“Chegou-se até a afirmar que o sigilo bancário constitui as pilastras do crédito e a garantia de uma economia sadia”.
(Cf. ARNOLD WALD. O Sigilo Bancário no Projeto de Lei Complementar de Reforma do Sistema Financeiro e na Lei Complementar no. 70. In Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. no. 1; 196-209).

O indivíduo e as instituições podem decidir por si, quando, como e até que ponto uma informação sobre eles pode ser comunicada a outrem. Assim, o direito à privacidade

“abrange atualmente o de impedir que terceiros, inclusive o Estado e o Fisco tenham acesso a informações sobre o que se denominou ‘área de manifestação existencial do ser humano’.”
( Cf. CELSO RIBEIRO BASTOS. Comentários à Constituição de 1988. V. 2., p. 63).

E complementa ARNOLD WALD:

“Na realidade, a grande distinção entre o Estado de Direito e o Estado totalitário consiste na garantia das liberdades e dos direitos individuais, ou seja, no direito de fazer tudo que a lei não proíbe e de só ter que fazer aquilo ao qual está obrigado em virtude de lei.”
(Cf. op. cit. p. 202).

Mas o direito ao sigilo serve também à sociedade, ao Estado e à segurança coletiva. A afirmação se torna evidente quando a Constituição concede ao indivíduo o instrumento do habeas data, por meio do qual todos podem receber dos órgãos públicos, informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”(Art. 5o., inciso XXXIII).

Apesar da clareza das normas constitucionais, as Fazendas Públicas, ainda hoje, insistem na inexistência de um sigilo bancário como direito fundamental. Ou mesmo admitindo o direito, opinam pela ausência do direito de oposição à comunicação de dados pessoais frente às pretensões fazendárias, ora aderindo a uma interpretação do Código Tributário Nacional já superada, ora invocando a derrogação da Lei 4595/64. Errôneos são os conceitos expendidos a respeito do direito estrangeiro sobre o assunto, uma vez que vários trabalhos desenvolvidos pelo Fisco desconhecem a posição dos tribunais de cada país invocado e desatualizados são os autores citados para falar sobre a Constituição de 1988 e o direito à privacidade. (É o caso de se invocar ALIOMAR BALEEIRO, sem dúvida um dos maiores mestres do Direito Tributário em todos os tempos, mas que, infelizmente, não tendo sobrevivido à Constituição de 1988, não pode formular juízos que necessariamente dependem da nova Carta brasileira. V. LUIZ MARCELLOS COSTA DE BRITO. Sigilo Bancário, aspectos fiscais e jurídicos. in Tributação em Revista, no. 12, abr-jun de 1995, p.55-63).

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre essas questões em tema de suma relevância, ou seja, em matéria penal, decidindo sobre petição que lhe foi formulada pelo Delegado da Polícia Federal, atinente ao inquérito policial no. 01.073/92-SR/DPFDF, solicitando autorização judicial para que os gerentes das agências BAMERINDUS informassem das contas correntes e dos extratos de contas bancárias em nome do ex-Ministro ANTONIO ROGÉRIO MAGRI e de sua esposa. Baseava-se o pedido em notícia de jornal, segundo a qual “duas cintas das usadas pelos bancos para prender dinheiro - nos valores de Cr$ 5 milhões e Cr$ 1 milhão - foram encontradas no lixo da mansão”... É o seguinte o teor da ementa do acórdão, relativo à petição no. 00005775/170 do STF:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA. Lei no. 4595, de 1964, art. 38.
I- Inexistentes os elementos de prova mínimos de autoria de delito, em inquérito regularmente instaurado, indefere-se o pedido de requisição de informações que implica quebra do sigilo bancário. Lei 4595, de 1964, art. 38.
II- Pedido indeferido, sem prejuízo de sua reiteração.
Relator. Min. Carlos Velloso, sessão plenária, maioria, vencido o Min. Marco Aurélio Mello, março de 1992.”

Dos votos exarados pelos membros da Corte Constitucional brasileira, podemos extrair as seguintes conclusões:
· o sigilo bancário decorre do direito à privacidade inerente à personalidade das pessoas, consagrado na Constituição Federal em seu art. 5o., X e protege tanto interesses privados como finalidades de ordem pública, a saber, o sistema de crédito (v. voto do Min. CARLOS VELLOSO;
· o sigilo bancário não é um princípio absoluto (v. voto Min. CARLOS VELLOSO);
· as exceções ao sigilo bancário estão previstas na Lei 4595/64, que continua em vigor (v. voto Min. CARLOS VELLOSO);
· o Poder Judiciário pode requisitar relativamente a pessoas e instituições, informações que implicam quebra do sigilo (Lei 4595/64, art. 38,par. 1o.); entretanto, mesmo havendo inquérito policial instaurado, deverá proceder com a cautela, prudência e moderação inerentes à magistratura ( v. voto Min. CARLOS VELLOSO);
· são requisitos essenciais para a quebra do sigilo que o pedido venha fundamentado com o indiciamento do acusado; com “os elementos de prova mínimos de autoria de delito” ou “de sua materialidade” (v. voto Min. CARLOS VELLOSO) ou “elementos fundados de suspeita, com a existência concreta de indícios e reveladores de possível autoria de prática delituosa” (v. voto Min. CELSO DE MELLO);
· não é bastante para a quebra do sigilo o mero “status suspicionis, sem outros dados mais consistentes” ( v. voto Min. CELSO DE MELLO);
· mas deve haver uma “relação de pertinência entre a prova pretendida, com as informações bancárias, e o objeto das investigações em curso” (v. voto Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), pois é necessário “que se demonstre ao Supremo Tribunal Federal que a providência requerida é indispensável ao êxito das investigações”...(v. voto Min. CÉLIO BORJA).

E ainda se ressalte do voto do Min. CARLOS VELLOSO:

“O sigilo bancário pode, pois ser afastado. Mas afastado como? Tenho, tal como entende o Sr. Ministro MARCO AURÉLIO, que a Lei 4595/64 foi recepcionada, em termos gerais, pela Constituição de 1988. Vou além, apesar de não ser hora de debatermos a questão: parece-me, até, que a Lei 4595/64 foi recepcionada como lei complementar, tendo em vista o disposto no art. 192, da Constituição, a estabelecer que “o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, ...” Registrei que há quem afirme que as novas leis originárias, que cuidam do sigilo dos bancos e das entidades financeiras, ultimamente promulgadas, seriam inconstitucionais, por isso que estariam
alterando lei complementar, na medida em que alteram e modificam as regras inscritas no art. 38 da Lei 4595/64. Repito, entretanto, que estou de acordo em que a Lei 4595/64 foi recepcionada pela Constituição de 1988. Estou plenamente de acordo no sentido de que tem vigência o art. 38, par. 1o., da Lei 4595/64, que autoriza o Poder Judiciário a requisitar informações que implicam quebra do sigilo bancário. Agora, aí é que reside a minha divergência com o Sr. Ministro MARCO AURÉLIO: é que sustento que o segredo somente pode ser afastado diante, por exemplo, de um procedimento criminal ou de um inquérito policial formalmente instaurado, em que haja indiciamento do acusado, com a indicação do delito praticado, com, pelo menos, um início de prova relativamente à autoria e à materialidade.”

Constatamos, então, que o entendimento do Supremo Tribunal Federal converge para o mesmo sentido dado por outros sistemas jurídicos, como Áustria, Alemanha, EEUU, Canadá, etc. ao direito à privacidade, de que o sigilo bancário é expressão. Extraído diretamente do Texto Constitucional, não basta para excepcioná-lo nem mesmo a edição de uma lei complementar - pois a Lei 4595/64 assim foi recepcionada pela Constituição, segundo a visão do Relator do acórdão, Min. CARLOS VELLOSO. Mesmo o PODER JUDICIÁRIO, que indubitavelmente pode afastar o sigilo bancário, mormente em matéria penal, à luz da própria Lei 4595/64, não é livre para fazê-lo, sem o cumprimento de determinados requisitos materiais. O Supremo Tribunal Federal não se satisfaz, portanto, para rompimento do sigilo bancário, um direito fundamental constitucionalmente consagrado, com a edição de uma lei complementar autorizativa, se essa lei complementar, em seu conteúdo, não contiver requisitos mínimos - existindo investigação em inquérito penal formalmente instaurado - tais como
· existência de início de prova quanto à ocorrência do delito, da autoria do delito e sua materialidade (princípio da objetividade material);
· existência de pertinência ou relação necessária entre a documentação cuja revelação se pede e o objeto criminalmente investigado (princípio da pertinência e adequação);
· imprescindibilidade da quebra do sigilo para o êxito das investigações (princípio da proibição de excesso).

A decisão do Superior Tribunal de Justiça (RE no. 37.566-5/RS), posterior àquela do Supremo Tribunal Federal, datada de 02 de fevereiro de 1994, nega o livre acesso da “autoridade administrativa fiscal” às informações e registros entregues à guarda bancária, interpretando a expressão contida na Lei 4595/64 - PROCESSO INSTAURADO - como processo judicial e negando valia ao art. 8º da Lei 8021/90. E nem poderia ser de outra maneira.

Se, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário, expressamente autorizado pela Lei 4595/64 a requisitar informações às instituições financeiras, está limitado e condicionado, em suas decisões, à observância de certos requisitos mínimos, acautelatórios e moderadores, assecuratórios da garantia constitucional do sigilo bancário, expressão do direito à privacidade, os demais Poderes, quer se trate do Legislativo, quer do Ministério Público em investigação penal ou da Administração Fazendária no lançamento e fiscalização dos tributos, não gozam, nem poderiam gozar de livre acesso, incontrastável, às informações bancárias. A possibilidade de oposição e resistência do contribuinte - essência e núcleo do direito à privacidade - seria nulificada se não fosse ouvido em juízo, ou se não pudesse opor à pretensão fazendária ou a eventuais abusos em inquérito penal, defesa oportuna.

A Lei Complementar no. 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, dispõe no art. 6o.:

“Compete ao Ministério Público da União:
............................................................................
XVIII- representar:
a) ao órgão judicial competente para quebra de sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, bem como manifestar-se sobre representação a ele dirigida para os mesmos fins;

E no art. 8o.:
“Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:
...........................................................
“IV- requisitar informações e documentos a entidades privadas;”

É claro que o Ministério Público tem poderes para requisitar diretamente informações ou documentos, cuja cessão não implique quebra do sigilo bancário e somente dentro dessas limitações deve ser compreendido o art. 8o. IV acima transcrito. Todas as vezes, e a citada Lei Complementar 75/93 nesse ponto é clara, que uma providência, requisição ou medida a ser tomada pelo Ministério Público implicar a perda ou redução de uma garantia constitucional, caberá tão somente representar ao órgão judicial competente, para obtenção expressa do mandado (art. 6o., XVIII, “a” da Lei comentada). E a decisão judicial pressupõe necessariamente, ainda à luz da Constituição, processo regular, devido processo legal e direito à defesa.

Outra inteligência da Lei Complementar no. 75/93 é incompatível com o Texto da Constituição Federal e não será aceita pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, como já foi visto, impõe ao próprio Poder Judiciário restrições mínimas a serem obrigatoriamente observadas nas hipóteses de exceção ao direito à privacidade (sigilo bancário). Caberia tal rigor limitativo apenas para o Poder Judiciário e não para o Ministério Público, o qual, pairando acima do Supremo Tribunal Federal e da Constituição, decidiria quando, onde, como e de quem requisitaria informações às instituições financeiras? Evidentemente que não.

Como o núcleo essencial do direito à privacidade e à intimidade, de que o sigilo bancário é um mero desdobramento (art.5o. X e XII da Constituição Federal), configura a liberdade de negação, direito de resistência e de oposição do contribuinte à divulgação dos dados pessoais, crescem de importância a defesa do contribuinte em juízo e o inteiro conhecimento prévio das pretensões do Fisco ou do Ministério Público, pois imprescindíveis e inerentes à própria garantia constitucional, sob pena de seu total esfacelamento.

Aliás, ao contrário do que se supõe, a inteligência da Lei 4595/64 e da Lei Complementar 75/93 somente pode ser feita às luzes da Constituição de 1988, e assim pressupõe representação encaminhada ao Poder Judiciário e obriga ao processo judicial. E, conclusão lógica, as referidas Leis não poderiam afastar, como de fato não o fazem, outros princípios constitucionais fundamentais que complementam o direito à privacidade, constantes de nossa atual Carta Magna, como o devido processo legal. (Art. 5o.LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. )

Como se vê, a Lei 9.613/98, que coíbe os crimes de lavagem de dinheiro, não sendo lei complementar, autorizou a quebra do sigilo bancário, em total descumprimento dos requisitos exigidos pelo Supremo Tribunal Federal:
· dispensou a intervenção do Poder Judiciário;
· dispensou os princípios da objetividade material, da pertinente adequação e da proibição de excesso, impondo a comunicação obrigatória de dados e das operações do contribuinte à autoridade administrativa, como instrumento para iniciar investigações e descobrir possíveis delitos. Aliás, a obrigatoriedade de comunicação se apresenta apenas em razão do valor ou teto das operações realizadas.

Certamente a notícia da quebra do sigilo bancário poderá não ser suficiente para afastar as técnicas conhecidas de “lavagem” de dinheiro. Se o teto limite for fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais), os criminosos realizarão operações menores de R$ 9.000,00 (nove mil reais) e assim por diante, ou então operarão os agentes com dinheiro vivo.

Entretanto, o risco que se corre é outro. A comunicação genérica à autoridade competente de toda transação acima de certo valor (independentemente de ser a operação criminosa ou suspeita) abala a segurança e a discrição em que deve repousar a atividade financeira em geral. Parte substancial dos recursos depositados nas praças brasileiras poderão deslocar-se para portos mais seguros e mais sigilosos. Vão-se os dólares, ficam-nos os bandidos e os crimes...

O rompimento do sigilo bancário, por meio da comunicação obrigatória de certas transações e operações à autoridade competente, vem sendo imposto aos países da América Latina. Na Comunidade Européia a sua adoção, sem autorização judicial, é controvertida mesmo em questões penais. Em razão de tais dificuldades, ou seja, de se criarem normas eficazes disciplinadoras da renda, do capital e da evasão, nenhuma diretiva foi aprovada, existindo apenas recomendações.

O Brasil, para satisfazer a pressões internacionais, vem desconhecendo a Constituição que tem, afrontando-a. Legisla repetindo normas de outras ordens jurídicas diferentes, sem entretanto atender às peculiaridades de nosso ordenamento. Além disso, fragiliza seu sistema financeiro, sem com isso obter real eficácia punitiva. Se seguir o rastro do dinheiro “sujo” é o único caminho para coibir certos crimes, então por que apagá-lo? Por que dizer que haverá comunicação obrigatória de transações e operações, ou seja, quebra do sigilo? Não seria melhor garanti-lo, para depois, caso a caso, mediante autorização judicial revelar dados e informações?


6. O uso das informações obtidas em execução da Lei 9613/98.

Os requisitos, já esboçados pelo Supremo Tribunal Federal, imprescindíveis à quebra do sigilo bancário como direito fundamental à privacidade e à intimidade são então: o princípio da objetividade material (que exige início de prova quanto à existência de um delito e de sua autoria); o princípio da pertinente adequação ( que supõe relação lógica entre o objeto penal investigado e os documentos pretendidos); o princípio da proibição de excesso (que exige a demonstração da imprescindibilidade da prova para o êxito da investigação e a inexistência de outros meios menos danosos ou limitativos).

Se não existem provas mínimas ou indícios da ocorrência de um delito, muito menos de sua autoria, não se pode pedir o levantamento do sigilo para a descoberta de um delito que ainda não se conhece, mas se imagina possa ter ocorrido. Meras acusações, assentadas naquilo que seria possível, não são fundamentação adequada à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para justificar a quebra do sigilo bancário, pois a “possibilidade” levantada em si mesma, como mera possibilidade é um “absoluto” tão vazio, inespecífico e genérico que poderia ser aplicado a qualquer cidadão, por mais honesto que fosse.

A Lei 9.613/98 é ofensiva à Constituição de 1988. Mas tal ofensa, segundo o teor da própria lei, restringe-se às investigações penais relativas ao crime de “lavagem” de dinheiro. Enquanto não declarada inconstitucional na parte em que rompe o sigilo, portanto, os procedimentos nela criados não são aplicáveis à investigação e apuração dos crimes contra a ordem tributária e outros que lhe são estranhos. É que o crime de “lavagem” e ocultação de bens, direitos e valores e os delitos antecedentes, que lhe servem de suporte, são coisa diversa de sonegação fiscal. Assim, informações, cruzamento de informações, dados e documentos obtidos, na forma da Lei 9.613/98, não poderão ser utilizados para lançar e cobrar tributos, ou punir infrações penais de fundo tributário.


7. Conclusões. Sugestões.

A forte tendência de globalização da economia desencadeia de um lado a fragilização cada vez maior do Estado como ente político e de outro, o crescimento considerável das grandes corporações internacionais.

Os poderes de investigação, fiscalização e administração dos tributos sempre se assentaram no interesse público, na indisponibilidade dos bens públicos, na necessidade da presença forte do Estado como instrumento essencial de coerção monopolizada e de segurança. Aqueles poderes se alimentam exatamente do poder estatal, cuja fragilização acarreta e acarretará o seu conseqüente enfraquecimento em face das grandes corporações econômicas.

Em conseqüência, a necessária praticidade, que deve nortear os legisladores na elaboração das leis tributárias (com a criação de presunções, somatórios, substituição tributária e de outras técnicas que se destinam a preparar a execução simplificada e em massa das leis) não deve levar nem à criação de tributos singelos, automatizados, nem tampouco à dispensa de escrita contábil regular para fins fiscais, exceto no que tange às micro e pequenas empresas. A renúncia à tributação da renda, em seu sentido clássico, como acréscimo ao patrimônio líqüido, por exemplo, poderá configurar uma renúncia sem retorno. Uma vez extinto e dispensada a escrita para fins fiscais, poderá ser impossível a sua reinstituição, tornando-se mais difícil a já difícil fiscalização dos deveres tributários dos grandes conglomerados econômicos internacionais. Nesse sentido, o imposto de renda e o imposto sobre patrimônio líqüido, o último sabidamente de fins meramente fiscalizatórios e de controle, exercem papel de alta relevância que não pode ser negligenciado.

Portanto, a simplificação da legislação tributária, leis e regulamentos, especialmente a dispensa da escrita fiscal deve estar voltada tão somente para a maioria, pequenas empresas e pessoas físicas. Não deve alcançar as empresas de faturamento superior a certo valor ou instituições ligadas a certas atividades especiais definidas em lei.

De modo geral, pode-se esperar que, por muitos anos, o lançamento por homologação seja o procedimento preferencialmente eleito para apuração do débito do contribuinte em relação aos mais importantes tributos, na prática realizando uma transferência do custo das atividades de gestão administrativa para o setor privado. Mas é essencial a educação de fiscais e agentes da administração tributária, altamente especializada, para o exercício eficiente de controle.

Em termos ideais, pode-se dizer que o sigilo bancário, uma vez extinto ou rompido universalmente, será medida benéfica para a fiscalização e o combate à sonegação. Mas esse rompimento não pode ser isolado, unilateralmente adotado por um país, pois será inevitável a evasão de capital.

No caso do Brasil, a Constituição Federal, ao garantir o direito à intimidade e o sigilo de dados, também garante o sigilo bancário, mas nunca de forma absoluta. Seria, portanto, de extrema utilidade a elaboração de uma lei complementar específica, que enumerasse as hipóteses em que o juiz, em procedimento ágil e imediato, desvelasse o segredo para fins fiscais. É preciso reclamar a intervenção do Poder Judiciário para a quebra do sigilo, mas simultaneamente garantir que tal rompimento ocorra, quando necessário, de forma segura e rápida.

Finalmente, cumpre deixar claro que houve, pelo menos em nosso País, a partir dos anos noventa, uma sistemática propaganda a favor da desestatização e desconstrução do Estado, acompanhada de depreciação ética e moral do serviço público em geral. Os reflexos dessa propaganda neoliberal e o modelo econômico de endividamento público recrudescem as tendências culturais de crescente aversão ao pagamento de tributo. Pagar tributo para quê? Somente para pagamento ao capital financeiro?

Perde-se, assim, cada vez mais, a perspectiva de solidariedade tributária e o afastamento da sociedade brasileira, em sua maioria, das famílias e dos contribuintes, dos fundamentos e dos fins do tributo. Nesse ponto, nenhum mecanismo de coerção será capaz de suprir a eficaz, voluntária e insubstituível colaboração de cada cidadão na arrecadação.

Belo Horizonte, outubro de 1999.




Misabel Abreu Machado Derzi


















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