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quinta-feira, 14 de abril de 2011

Organizações Sociais e contrato de gestão (Transcrições)




(v. Informativo 621)



ADI 1923/DF*



RELATOR: Min. Ayres Britto



VOTO: De saída, pergunto, para em seguida responder, o seguinte: a Lei 9.637/98 e o inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93 (com a redação dada pela Lei 9.648/98) violam a Constituição Federal? O modo pelo qual serão prestadas atividades “dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde” desrespeitam as normas constitucionais brasileiras?

15. Bem, a resposta passa pela revelação do regime constitucional dos serviços públicos, espécie do gênero “atividade estatal”. Regime que tem no art. 175 da Constituição de 1988 a sua viga mestra e o focado contraponto ao princípio da liberdade de iniciativa que se lê no art. 170 da mesma Carta Federal. Este último, consagrador da ideia-força de que as atividades econômicas são próprias da iniciativa privada. Já o art. 175, a seguir itinerário mental oposto, consoante os seguintes dizeres: “incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

16. Vê-se, portanto, que: a) a atividade econômica é o habitat da iniciativa privada, assegurando-se a todos os indivíduos o seu livre exercício, “independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (parágrafo único do art. 170 da CF); b) a prestação de serviços públicos, ao reverso, faz parte das competências constitucionais da União e das demais pessoas federadas. Espécie do gênero “atividades públicas” - ainda há pouco dissemos -, sendo que as atividades públicas são custeadas ou financiadas com os impostos e contribuições sociais que o Estado impõe e arrecada (atividades gerais como a legislação, a jurisdição, a diplomacia, a defesa, a segurança pública), enquanto que os serviços públicos são ordinariamente autofinanciados, ora por taxas, ora por tarifas ou preços públicos; ou seja, se prestados pelo próprio setor público, seu custeio se dá mediante a imposição de taxas; se prestados pelo setor privado – mediante contratos de concessão ou de permissão –, seu financiamento se dá por tarifas ou preços públicos. Daí os seguintes preceitos constitucionais:



“Art. 21. Compete à União:

(...)

X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;

XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;

(...)

XV – organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;

(...)

XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:

XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;



Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

(...)

V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;



Art. 25. (...)

(...)

§ 2º. Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.



Art. 30. Compete aos Municípios:

(...)

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

(...)

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.



Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

(...)

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

(...)

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.



Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

(...)

III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;



Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

(...)

II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;



Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

(...)

III – política tarifária;



Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.



Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.



Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:



Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.



Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

(...)

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

(...)

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.



Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

(...)

§ 1º. O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º. O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.



Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

§ 1º. A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

§ 2º. Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

§ 3º. Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.

§ 4º. Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.

§ 5º. A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.



Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.



Art. 216. (...)

§ 1º. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.



Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

(...)

§ 5º. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.



Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:



Art. 242. O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos.

(...)

§ 2º. O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal.”



17. Como se percebe, a luzes claras, quis a nossa Carta Magna que competisse à União explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer o monopólio sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados (inciso XXIII do art. 21 da CF). Prescreveu ainda caber à mesma União explorar, diretamente, ou sob regime de concessão, permissão ou autorização, serviços de telecomunicações, radiodifusão sonora e de sons e imagens, energia elétrica, navegação aérea, aeroespacial, infra-estrutura aeroportuária, transporte ferroviário, aquaviário e rodoviário, etc (incisos XI e XII do art. 21 da CF). No mesmo tom, ordenou que ficassem sob a competência dos Municípios a organização e prestação direta, ou mediante concessão ou permissão, dos serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo (inciso V do art. 30 da CF). Disse também caber ao Poder Público a iniciativa de ações destinadas a assegurar os direitos pertinentes à saúde, à previdência, à assistência social (art. 194 da CF), à educação (art. 205 da CF), à cultura (art. 215 da CF), ao desenvolvimento científico e tecnológico (art. 218 da CF) e ao meio ambiente (art. 225 da CF). Em suma, o papel do Estado na prestação de certas atividades, dentre as quais os serviços públicos, é o de protagonista-mor ou agente central. Logo, diferentemente da atividade econômica, seara em que o Poder Público, atuando como agente normativo e regulador, exerce, em regra, funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174 da CF), no palco dos serviços públicos o Estado é ator por excelência, prestando-os diretamente, ou então, sob o regime de concessão, permissão ou autorização.

18. Também a luzes claras se percebe: a) ao contrário das atividades gerais do Estado, os serviços públicos são “específicos e divisíveis”, no sentido de que são prestados aos respectivos usuários com perfeita ou inconfundível identidade material e mensurabilidade no seu individualizado desfrute. Isso para o efeito da quantificação per capita do seu consumo e consequente retribuição pecuniária sob a forma de taxa, ou de tarifa; b) ao lado deles, serviços públicos de titularidade estatal exclusiva, colocam-se atividades que são também de senhorio estatal, mas não com exclusividade. Refiro-me às atividades de saúde pública, educação e ensino, cultura, previdência social, meio ambiente, ciência e tecnologia, assistência social, que, titularizadas por toda e qualquer pessoa federada (deveres que são de cada uma dessas pessoas públicas), também se inscrevem no âmbito do senhorio e exploração das pessoas privadas. Pelo que se definem como atividades mistamente públicas e privadas. Importando muito lembrar que, se prestadas pelo setor público, são atividades públicas de regime jurídico igualmente público. Se prestadas pela iniciativa privada, óbvio que são atividades privadas, porém sob o timbre da relevância pública. Conforme diz a Constituição – por amostragem, entenda-se –, nos seguintes preceitos:



“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.



Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.



Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º. As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

§ 2º. É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.

(...)

§ 3º. É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.



Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.



Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I – cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II – autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.



Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:

I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;

II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público, no caso de encerramento de suas atividades.

§ 1º. Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o poder público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.

§ 2º. As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do poder público.



Art. 216. (...)

§ 1º. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

(...)

§ 3º. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.



Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

(...)

§ 3º. O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.

§ 4º. A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.



Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.



Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.



Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:

(...)

§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

VI – estímulo do poder público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;



Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público.”



19. Agora é de se perguntar: à iniciativa privada é permitida a prestação de serviços públicos? Há serviços públicos em que o setor privado pode atuar por sua conta e risco? Em caso afirmativo, podem recursos públicos ser destinados a instituições privadas, não integrantes da Administração Pública? Existe mesmo um setor público não-estatal, ou, por definição, todo setor público tem que ser estatal?

20. Da leitura de todos esses dispositivos constitucionais desata a compreensão de que, realmente, há serviços públicos passíveis de prestação não-estatal. Serviços que, se prestados pelo setor público, seja diretamente, seja sob regime de concessão, permissão ou autorização, serão de natureza pública; se prestados pela iniciativa privada, serão também de natureza pública, pois o serviço não se despubliciza pelo fato do transpasse da sua prestação ao setor privado.

21. Já no que toca às atividades de senhorio misto, serão elas de natureza pública, se prestadas pelo próprio Estado, ou em parceria com o setor privado. E se desempenhadas exclusivamente pelo setor privado, sua definição é como atividades ou serviços de relevância pública (inciso II do art. 129 e art. 197, ambos da CF). Assim é que o art. 199 da Constituição Federal dispõe, categoricamente, ser livre à iniciativa privada a assistência à saúde. Disposição repetida no art. 209 quanto ao ensino. De se ver também a referência explícita: a) a um regime de previdência privada (art. 202 da CF); b) à colaboração da comunidade na proteção do patrimônio cultural brasileiro (§ 1º do art. 216 da CF); c) ao incentivo a empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia (§ 4º do art. 218 da CF); d) ao dever da coletividade de defender e preservar o meio ambiente (caput do art. 225 da CF). Quanto à possibilidade de destinação de recursos públicos às entidades privadas, exercentes de atividades de relevância pública, também não vacila a Constituição Federal, ainda que imponha a observância de certos requisitos. São evidências disso: a) a participação de instituições privadas no sistema único de saúde, mediante contrato de direito público ou convênio (§ 1º do art. 199 da CF); b) a vedação de auxílios ou subvenções na área de saúde apenas às instituições privadas com fins lucrativos (§ 2º do art. 199 da CF); c) a participação de entidades não governamentais na promoção de programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, com a previsão, inclusive, de subsídios públicos (inciso VI do § 3º e § 1º, ambos do art. 227 da CF); d) o aporte de recursos do Estado a entidades de previdência privada, na qualidade de patrocinador (§ 3º do art. 202 da CF); e) a destinação de recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, bem como a concessão de bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio (art. 213 e § 1º da CF); f) o apoio financeiro do Poder Público às atividades universitárias de pesquisa e extensão (§ 2º do art. 213 da CF).

22. Nesse amplo contexto normativo, penso já se poder extrair uma primeira conclusão: os particulares podem desempenhar atividades que também correspondem a deveres do Estado, mas não são exclusivamente públicas. Atividades, em rigor, mistamente públicas e privadas, como efetivamente são a cultura, a saúde, a educação, a ciência e tecnologia e o meio ambiente. Logo, atividades predispostas a uma protagonização conjunta do Estado e da sociedade civil, por isso que passíveis de financiamento público e sob a cláusula da atuação apenas complementar do setor público. Noutro dizer, ali onde a atividade for de exclusivo senhorio ou titularidade estatal, a presença do Poder Público é inafastável. Contudo, se essa ou aquela atividade genuinamente estatal for constitutiva: a) de serviço público, o Estado não apeia jamais da titularidade, mas pode valer-se dos institutos da concessão ou da permissão para atuar por forma “indireta”; ou seja, atuar por interposta pessoa jurídica do setor privado, nos termos da lei “e sempre através de licitação” (art. 175 da CF); b) se constitutiva de “serviço de relevância pública”, que já se define como atividade mescladamente pública e privada no seu senhorio ou titularidade, aí a respectiva prestação se dá pela iniciativa privada, em caráter complementar à ação estatal.

23. Recolocando a ideia: assim como seria inconstitucional uma lei que “estatizasse” toda a atividade econômica (a participação do Estado se dá por exceção, para atender “aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”, nos termos da cabeça do artigo 173 da Constituição Federal), também padeceria do vício de inconstitucionalidade norma jurídica que afastasse do Estado toda e qualquer prestação direta (pelos próprios órgãos e entidades da Administração Pública) dos serviços que são dele, Estado, e não da iniciativa privada. Não por acaso, a Constituição Federal prevê: a) a instituição de um sistema único para integrar as ações e serviços públicos de saúde (art. 198 da CF), do qual instituições privadas poderão participar de forma complementar (§ 1º do art. 199 da CF); b) um regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social; c) a existência de um ensino público, obrigatório e gratuito, em estabelecimentos oficiais, com profissionais recrutados exclusivamente por concurso público de provas e títulos (incisos IV e V do art. 206, §§ 1º e 2º do art. 208, todos da CF); c) a aplicação de um mínimo de recursos na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (alínea “e” do inciso VII do art. 34, inciso III do art. 35, § 2º do art. 198 e art. 212, todos da CF).

24. Isso posto, feito o exame das normas constitucionais pertinentes à matéria em causa, passo a analisar o conteúdo da Lei 9.637/98. Lei que “dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais”. Diploma legislativo que os requerentes tacham de inconstitucional, na íntegra, mas a quem dou razão apenas em parte. Passo a explicar.

25. Têm razão os autores quando impugnam o que se convencionou chamar de “Programa Nacional de Publicização”. Programa que, nos termos da Lei 9.637/98, consiste na “absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1º, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei” (art. 20). Em outras palavras, órgãos e entidades públicos são extintos ou desativados e repassados todos os seus bens à gestão das organizações sociais, assim como servidores e recursos orçamentários são igualmente repassados a tais aparelhos ou instituições do setor privado. Fácil notar, então, que se trata mesmo é de um programa de privatização. Privatização, cuja inconstitucionalidade, para mim, é manifesta. Conforme concluí acima, a Constituição determina, quanto aos serviços estritamente públicos, que o Estado os preste diretamente, ou, então, sob regime de concessão, permissão ou autorização. Isto por oposição ao regime jurídico das atividades econômicas, área em que o Poder Público deve atuar, em regra, apenas como agente indutor e fiscalizador. Não fosse assim, a Magna Carta não faria a menor referência a serviços públicos de saúde (mescladamente públicos, entenda-se), a estabelecimentos oficiais de ensino, a regime geral de previdência social, etc. Ora, o que faz a Lei 9.637/98, em seus arts. 18, 19, 20, 21 e 22, é estabelecer um mecanismo pelo qual o Estado pode transferir para a iniciativa privada toda a prestação de serviços públicos de saúde, educação, meio ambiente, cultura, ciência e tecnologia. A iniciativa privada a substituir o Poder Público, e não simplesmente a complementar a performance estatal. É dizer, o Estado a, globalmente, terceirizar funções que lhe são típicas. O que me parece juridicamente aberrante, pois não se pode forçar o Estado a desaprender o fazimento daquilo que é da sua própria compostura operacional: a prestação de serviços públicos.

26. Realmente, o problema não está no repasse de verbas públicas a particulares, nem na utilização, por parte do Estado, do regime privado de gestão de pessoas, de compras e contratações. A verdadeira questão é que ele, Estado, pelos arts. 18, 19, 20, 21 e 22 da Lei 9.637/98 (dispositivos que falam em “absorção”, por organizações sociais, das atividades desempenhadas por entidades públicas a ser extintas) ficou autorizado a abdicar da prestação de serviços de que, constitucionalmente, não pode se demitir.

27. A se ter como válida a mencionada “absorção”, nada impediria que, num curto espaço de tempo, deixássemos de ter estabelecimentos oficiais de ensino, serviços públicos de saúde, etc. Isso, tendo em vista que a organização social é pessoa não integrante da Administração Pública. Logo, o Estado passaria a exercer, nos serviços públicos, o mesmo papel que desempenha na atividade econômica: o de agente apenas indutor, fiscalizador e regulador, em frontal descompasso com a vontade objetiva da Constituição Federal. O que de pronto me leva a julgar inconstitucionais os arts. 18 a 22 da Lei 9.637/98.

28. O que a Magna Carta admite e até mesmo estimula, agora sim, é a colaboração entre particulares e o Poder Público. Daí estabelecer o art. 1º da Lei 9.637/98 que “o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos” na lei. Organizações sociais que, uma vez assim qualificadas, poderão firmar com o Poder Público um “contrato de gestão”, “com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º” (art. 5º da Lei 9.637/98). Contrato de que poderão constar cláusulas garantidoras: a) do repasse de recursos orçamentários; b) do uso de bens públicos; c) da cessão especial de servidores estatais (arts. 12 e 14 da Lei nº 9.637/98).

29. Sob tais coordenadas normativas, não enxergo inconstitucionalidade nesse mecanismo de parceria entre o Estado e os particulares. Conforme visto, a Magna Carta franqueia à iniciativa privada a prestação de vários serviços de relevância pública e permite (até mesmo determina) que o Poder Público fomente essas atividades, inclusive mediante transpasse de recursos públicos. E o fato é que todos os serviços enumerados no art. 1º da Lei 9.637/98 são do tipo “não exclusivos do Estado”, dando-se que as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, ali igualmente contempladas, são passíveis de qualificação como organizações sociais. Daí o chamado “contrato de gestão” consistir, em linhas gerais, num convênio. Não exatamente num contrato de direito público, senão nominalmente.

30. Neste passo, calha invocar a doutrina de Hely Lopes Meirelles, para quem “no contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio os partícipes têm interesses comuns e coincidentes”. É como também ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, nesta clara dicção: os “convênios e consórcios diferem da generalidade dos contratos administrativos porque, ao contrário destes, não há interesses contrapostos das partes, mas interesses coincidentes”. Ainda Marçal Justen Filho, a saber: “no chamado ‘convênio administrativo’, a avença é instrumento de realização de um determinado e específico objetivo, em que os interesses não se contrapõem – ainda que haja prestações específicas e individualizadas, a cargo de cada partícipe”. Ora, no caso da celebração, entre Estado e organização social, de “contrato de gestão”, impossível deixar de reconhecer a presença de interesses tão recíprocos quanto convergentes. A entidade privada “contratante” tem objetivos de natureza social e finalidade não lucrativa (alíneas “a” e “b” do inciso I do art. 2º da Lei 9.637/98). Objetivos e finalidades compartilhados com o Poder Público. Donde José dos Santos Carvalho Filho averbar, categórico:



“Devidamente qualificadas, as organizações sociais celebram com o Poder Público o que a lei denominou de contratos de gestão, com o objetivo de formar a parceria necessária ao fomento e à execução das atividades já mencionadas. A despeito da denominação adotada, não há propriamente contrato nesse tipo de ajuste, mas sim verdadeiro convênio, pois que, embora sejam pactos bilaterais, não há a contraposição de interesses que caracteriza os contratos em geral; há, isto sim, uma cooperação entre os pactuantes, visando a objetivos de interesses comuns. Sendo paralelos e comuns os interesses perseguidos, esse tipo de negócio jurídico melhor há de enquadrar-se como convênio.”



31. Pois bem, da conclusão de que o “contrato de gestão” é, na verdade, um convênio, toma corpo o juízo técnico de que, em princípio, há desnecessidade de processo licitatório para a sua celebração. Leia-se Maria Sylvia Zanella Di Pietro:



“Quanto à exigência de licitação, não se aplica aos convênios, pois neles não há viabilidade de competição; esta não pode existir quando se trata de mútua colaboração, sob variadas formas, como repasse de verbas, uso de equipamentos, recursos humanos, imóveis. Não se cogita de preços ou de remuneração que admita competição.

Aliás, o convênio não é abrangido pelas normas do art. 2º da Lei nº 8.666/93; no caput, é exigida licitação para as obras, serviços, compras, alienações, concessões, permissões e locações, quando contratadas com terceiros; e no parágrafo único define-se o contrato por forma que não alcança os convênios e outros ajustes similares, já que nestes não existe a ‘estipulação de obrigações recíprocas’ a que se refere o dispositivo.”



32. Sendo assim, tenho que não viola, em linha de princípio, a Constituição Federal o inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93, com a redação dada pela Lei 9.648/98. É que a excludência de processo licitatório para a celebração de contrato de gestão nada mais retrata do que a verdadeira natureza convenial do ajuste. Natureza que possibilita, inclusive, a desnecessidade de proceder licitatório para a permissão de uso de bem público (§ 3º do art. 12 da Lei 9.637/98).

33. É preciso, porém, fazer a seguinte ressalva: a desnecessidade do procedimento licitatório: a) não afasta o dever da abertura de processo administrativo que demonstre, objetivamente, em que o regime da parceria com a iniciativa privada se revele como de superior qualidade frente à atuação isolada ou solitária do próprio Estado enquanto titular da atividade em questão; b) não libera a Administração da rigorosa observância dos princípios constitucionais da publicidade, da moralidade, da impessoalidade, da eficiência e, por conseguinte, da garantia de um processo objetivo e público para a qualificação das entidades como organizações sociais e sua específica habilitação para determinado “contrato de gestão”; c) não afasta a motivação administrativa quanto à seleção de uma determinada pessoa privada, e não outra, se outra houver com idêntica pretensão de emparceiramento com o Poder Público; d) não dispensa a desembaraçada incidência dos mecanismos de controle interno e externo sobre o serviço ou atividade em concreto regime de parceria com a iniciativa privada.

34. No ponto, precisas são as palavras do então Procurador-Geral da República Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, literis:



“32. No atual estado de evolução do Estado constitucional, não existe abertura a que juízos dessa monta – a lidar com a centralidade de direitos fundamentais, aqui numa dimensão objetiva, como a que indica ao Estado o dever de prestar educação e saúde – sejam formulados sem que à sociedade esteja franqueado acesso irrestrito a todas as justificativas, razões e percepções do gestor público. Uma ou outra opção precisam, necessariamente, ter aval em motivos e objetivos justificados – e sempre verificáveis –, assim como seus propostos resultados estão sujeitos a controle.

33. A adoção do regime jurídico-privado pela Administração demanda um ‘nexo de necessidade’ e não de mera ‘conveniência’. E como se irá obter esse juízo?

34. A Lei 9.637/98, no entanto, organiza um sistema absolutamente aleatório de classificação de organizações que hão de ser laureadas com o título de ‘sociais’, pondo ao isolado alvedrio do administrador, no caso, ao ministro de Estado ou ao gestor do órgão que deva regular a área de atuação da entidade (art. 2º, II), o juízo de oportunidade e de conveniência quanto à absorção pelo Poder Público dos desígnios da instituição-candidata, que então, mediante contrato de gestão, será fomentada com dinheiro, pessoal e material, elevando-se, ainda, a potencial beneficiária de contratação com a Administração, e tudo isso fora das regras regulares de mercado, pois não precisará se submeter a processo público de licitação.

35. Se a retórica de base é a eficiência na prestação do serviço, vai mal o modelo organizado pela Lei 9.637/98. A decisão de se classificar um organismo como organização social, em decorrência do status diferenciado que esta nomenclatura confere à entidade, é uma deliberação marcada por todos os contornos do regime jurídico público.

36. Ainda que seja para atuar em espaço de interesse coletivo que está franqueado também aos agentes econômicos privados, o envolvimento material do Poder Público com a organização exige que se espraiem os princípios do art. 37 da Constituição da República por todo o conjunto normativo. De nada serve a referência feita aos princípios constitucionais da Administração no art. 7º da Lei 9.637/98, ao tratar do contrato de gestão, se esse ideário é ignorado no instante da verdadeira decisão pública de relevo, que é a própria classificação de que cuidam os arts. 1º e 2º.

37. Aqui surge um tema relevantíssimo ligado à necessária limitação da fuga para o direito privado, que diz com a procedimentalização das condutas administrativo-estatais e sua – virtual – aplicação às entidades privadas que atuem nessa arena.

38. A opção por se adotar o regime jurídico-privado para prestar o serviço, ao se classificar uma entidade como ‘organização social’, não indica que o momento lógico anterior à essa prestação deve também representar a expressão de um lado autônomo do Poder Público. A Administração não passa, a partir da edição da Lei 9.637/98, a deter autonomia – na melhor acepção de direito privado – para escolher a condução de suas ações. Caberá ao gestor percorrer todo o caminho jurídico e administrativo para que, ao fim, obtenha decisão construída num ambiente propício ao controle de suas razões.

39. Isso porque, no final da linha, o que se tem é a destinação de receitas orçamentárias a entidades de direito privado, podendo representar, se exagerada a liberdade de ação, num subterfúgio às destinações legais das verbas, definidas em processo legislativo próprio que é a lei orçamentária.

(...)

41. A Lei 9.637/98 ressente-se da falta de regras que coordenem melhor o controle desse processo de transferência. A tomada de decisão do administrador não está sujeita a nenhum critério objetivo, senão o seu juízo discricionário – ao contrário do ato de desqualificação, que, inversamente, demanda, segundo os termos do diploma examinado (art. 16, § 1º), instauração de procedimento administrativo, a representar a constituição de direitos subjetivos em proveito da organização social prestigiada.

(...)

43. A disciplina da classificação merece um cuidado maior, sem o que não se harmoniza com a Constituição da República, exatamente por propiciar, na formatação que a literalidade da norma emprega, excessiva discricionariedade do agente público que, no trato da constituição de relações jurídicas com particulares, especialmente para efeito de se pretender obter um resultado público-social, deve atender a níveis republicanos de comportamento. Em suma, a decisão da qualificação, ou não, de uma entidade como organização social, assim como o processo de lhe integrar ao papel estatal, ainda que pela regência especial do contrato de gestão, deve atender a juízos racionais do agente público, juízos esses que possam ser controlados pelos interessados e, em especial, pela sociedade.

(...)

45. A qualificação pode ser admitida assim, para o propósito de se avaliar a sua constitucionalidade, como uma etapa absolutamente autônoma do processo de transferência do serviço ao regime jurídico privado. Obviamente, a contratação emana de um processo decisório político-administrativo, pois representa a opção pelo modelo jurídico diferenciado de execução de uma atividade pública. A qualificação como organização social pode ser entendida como espécie de necessária habilitação dos interessados em contratar com o Poder Público.

46. A habilitação é um passo técnico que não pode se valer de critérios discricionários muito abertos, sob pena de trancar, desde logo, o caminho à contratação.

47. Essa, por sua vez, embora constitua decisão política do gestor público, que nem por isso está absolutamente livre de controle, deve atender a estruturas constitucionais. Volto a LEITE SAMPAIO para dizer que ‘se o objetivo é a prestação de serviço público de maneira mais eficiente e eficaz, deve-se oportunizar às organizações sociais existentes a apresentação de sua proposta de trabalho, o que exige publicidade da intenção do Poder Público para firmar o contrato de gestão’.

48. O contrato de gestão, portanto, somente pode ser firmado com o personagem que tenha sido eleito após resultado de um processo público de deliberação, que constituirá o meio hábil a atender não só o princípio da isonomia, pois todos devem ter mesmas chances de contratar com o Poder Público, como também aos primados da Lei 9.637/98, nos quais tanto se sustentam na procura da melhor maneira de se executar, com foco no resultado, uma tarefa de interesse social. Nas palavras de LEITE SAMPAIO, ‘haverá necessidade de apuração do melhor perfil institucional por meio de decisão fundamentada proferida em procedimento simplificado que confira transparência à escolha e revele a prevalência do interesse público’.

(...)

54. Sob tal ordem de ideias, e em conclusão, penso que a melhor solução, para efeito de se obter grau suficiente de atendimento a princípios constitucionais, é a de, no controle concentrado, configurar-se pronunciamento que transfira a decisão política de se adotar o regime jurídico privado para o momento de deliberação sobre a possibilidade de optar-se pelo regime do contrato de gestão; decisão essa que deve partir de um processo público, de padrões objetivos, a que se dê ampla publicidade, possibilitando que todos os interessados possam contratar com o Poder Público, que deve adotar a melhor solução para o fim de se obter o melhor cumprimento da tarefa social pretendida.

(...)

56. A qualificação, por sua vez, por fazer parte fundamental do processo de habilitação, se for enquadrada pelo ângulo republicano, para que dê chances a absolutamente todos os interessados em atuar na arena pública, deve ser compreendida como um ato vinculado do administrador, o que faz cair a expressão ‘quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social’ do inciso II do art. 2º da Lei 9.637/98.” (negritos à parte)



35. É como penso, a partir da observação de que, salvo o que se contém no inciso II do art. 2º da Lei 9.637/98, todos os requisitos para a qualificação de uma pessoa jurídico-privada como organização social são de índole rigorosamente formal (registro do ato constitutivo, nos termos do inciso I do art. 2º, composição e atribuições do Conselho de Administração, conforme dicção dos arts. 3º e 4º). A patentear que não sobra mesmo espaço para decisão desataviada ou totalmente discricionária da Administração Pública. Donde a impossibilidade de se recusar o qualificativo de organização social àquelas entidades que atendam aos pressupostos formais dos arts. 2º, 3º e 4º da Lei 9.637/98 e ainda se nivelem àquelas já contempladas com o juízo afirmativo da Administração; isto é, já formalmente qualificadas como organizações sociais.

36. Daqui se desprende a serena proposição cognitiva de que a aprovação “do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade” é de se dar na esfera da mais franca publicidade e objetiva motivação. Noutros termos, é de se proceder a um chamamento público, com regras objetivas, para que, de todas as organizações sociais com atuação na área em que pretende agir o Poder Público por modo emparceirado com o setor privado, seja convocada aquela de maior aptidão para vitalizar a atividade que, em princípio, demandaria atuação estatal por sua exclusiva conta e risco. Sem contrato ou convênio com quem quer que seja, portanto. É como propõem Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Floriano de Azevedo Marques Neto, Maria Coeli Simões Pires, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Paulo Eduardo Garrido Modesto e Sérgio de Andréa Ferreira, na exposição de motivos do anteprojeto de lei que versa, justamente, sobre a formulação do que eles designam por “contrato público de colaboração”. Confira-se:



“O principal objetivo do modelo normativo adotado pelo anteprojeto é o de estabelecer, como exigência prévia à celebração do contrato, a realização de procedimento público sob a denominação de chamamento público, corrigindo-se falha hoje existente na legislação que disciplina os ajustes da Administração Pública com os referidos entes. O objetivo é o de permitir o amplo e prévio controle de todas as contratações, pela adoção de um método transparente de escolha do contratado e de determinação do conteúdo do contrato. O chamamento público não é um processo de licitação – e, por isso, não segue o regime legal desta, que não foi concebido para a formatação de contratos de colaboração – mas se inspira em princípios de algum modo semelhantes. Deveras, o processo será realizado em consonância com os princípios legais e constitucionais da Administração Pública, especialmente publicidade, isonomia e motivação.

Ao instituir essa exigência geral de procedimentalização para a celebração dos contratos de colaboração, o anteprojeto tomou o cuidado de não amarrar a ação administrativa a um modelo processual fixo, que poderia inviabilizar a ação administrativa eficiente. A solução jurídica adotada – compatível com a necessidade de flexibilidade – foi a de impor, às entidades administrativas, o dever de, previamente a qualquer contratação, editar normas definindo suas condições e detalhando os procedimentos a serem adotados.” (grifo nosso)



37. Ora, acrescento, outro não é o comando constitucional de procedimentalização ou peculiarização do proceder licitatório das empresas estatais que explorem atividade econômica. Quero dizer: mesmo em se tratando de empresa estatal não prestadora de serviço público, mas exploradora de atividade econômica, a Constituição apenas transferiu à lei a incumbência de peculiarizar o regime de licitação que de logo impôs a todas elas. Não optou pela exclusão do processo licitatório. E não optou pela exclusão de tal proceder competitivo, em homenagem, justamente, aos princípios do art. 37 dela mesma, Constituição Federal. Leia-se o texto:



“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

(...)

III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;”



38. Nesse fluxo de ideias, imperioso reconhecer a inconstitucionalidade do fraseado “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social”, contido no inciso II do art. 2º da Lei 9.637/98. E no que tange ao contrato de gestão (arts. 5º, 6º e 7º), é de explicitar, via interpretação conforme à Constituição, o que, por implicitude, já se contém no art. 7º da multicitada lei: sem a realização de um processo público e objetivo para a celebração do contrato de gestão – não, necessariamente, de um processo licitatório –, resultariam inobservados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, economicidade e isonomia.

39. Por igual, a observância dos princípios constitucionais da Administração Pública se estende à execução do contrato. Execução que “será fiscalizada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada” (art. 8º). Mas uma fiscalização em paralelo: a) àquela que já faz parte das competências constitucionais do Ministério Público e dos Tribunais de Contas; b) àquela exercida pelos próprios cidadãos, como corolário do princípio da publicidade (inciso XXXIII do art. 5º e § 3º do art. 37, ambos da CF). Sem que isso encontre obstáculo nos arts. 8º a 10, menos ainda no inciso X do art. 4º, todos da Lei 9.637/98.

40. Passo agora à análise das alegações de que seriam inconstitucionais os incisos V, VII e VIII do art. 4º, o inciso II do art. 7º e o art. 14, todos da Lei 9.637/98. Inconstitucionalidade consistente em que os salários dos dirigentes e empregados da organização social, embora pagos com recursos públicos, não seriam fixados nem atualizados por lei. Também assim a contratação de pessoal, que seria discricionária pelo fato da não-realização de concurso público. Ademais, haveria “fraude à Constituição, mediante a descaracterização do ente público com o qual mantém o servidor a relação estatutária, atribuindo-se ao ente privado a capacidade não apenas de fixar remuneração, sem a necessária aprovação de lei própria, mas também a possibilidade de que este acréscimo não seja integrado ao patrimônio jurídico do servidor, para efeitos do cálculo dos proventos da inatividade”.

41. Nesse novo desafio temático, tenho que os incisos V, VII e VIII do art. 4º e o inciso II do art. 7º, ambos da Lei 9.637/98, não padecem do vício maior da inconstitucionalidade. É que as organizações sociais, ainda que eventualmente habilitadas a empregar recursos públicos, não se caracterizam jamais como parcela da Administração Pública. Seus diretores e empregados não são servidores ou empregados públicos. Consequentemente, não se lhes aplica o disposto nos incisos II e X do art. 37 da Constituição Federal. Noutras palavras, mesmo sujeitas a procedimento impessoal na seleção dos empregados e na fixação dos respectivos salários, não há que se falar em concurso público, ou remuneração fixada por lei. Já no tocante aos servidores públicos cedidos na forma do art. 14 da Lei 9.637/98, a situação é oposta. É aplicável – aqui, sim – o inciso X do art. 37 da Magna Carta, segundo o qual “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica”. Sendo assim, toda a retribuição pecuniária paga pelo trabalho dos servidores públicos, mesmo que cedidos, é de ser prevista em lei (ainda que o ônus desse pagamento recaia sobre o órgão ou entidade cessionários). Logo, inconstitucional é o § 1º do art. 14 da Lei 9.637/98, atinente a cessão especial “com ônus para a origem”, na parte em que permite a pessoa jurídica privada pagar vantagem pecuniária a servidor público, sem que lei específica o autorize. Mais: a parte final do § 2º do mesmo artigo prevê o pagamento de “adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria” com recursos públicos, o que, além de ofender o inciso X do art. 37 da Constituição Federal, vulnera o § 1º de seu art. 169. Pelo que julgo inconstitucional a expressão “com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria”, contida no § 2º do art. 14 da Lei 9.637/98. Consequentemente, e por ficar vedado o pagamento, pela organização social, de qualquer vantagem pecuniária a servidor público cedido, perde sua razão de ser o § 1º do mesmo art. 14 (inconstitucionalidade por reverberação normativa).

42. Por fim, não posso deixar de propor a modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade dos arts. 18 a 22 da Lei 9.637/98. É que a lei vigora há mais de doze anos e este Supremo Tribunal Federal indeferiu o pedido de liminar. Nesse período, várias entidades públicas (federais, estaduais e municipais) foram extintas, repassando-se para organizações sociais a prestação das respectivas atividades. A Lei 9.637/98 assim procedeu, ela própria, quanto ao Laboratório Nacional de Luz Síncronton e à Fundação Roquette Pinto. Dessa forma, tendo em vista razões de segurança jurídica, não é de se exigir a desconstituição da situação de fato que adquiriu contornos de extratificação. As organizações sociais que “absorveram” atividades de entidades públicas extintas até a data deste julgamento hão de continuar prestando os respectivos serviços. Sem prejuízo, claro, da obrigatoriedade de o Poder Público, ao final dos vigentes contratos de gestão, instaurar processo público e objetivo (não, necessariamente, licitação, nos termos da Lei 8.666/93) para as novas avenças.

43. Ante o exposto, voto pela procedência parcial desta ação direta. Isto para declarar a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei 9.637/98: a) o fraseado “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social”, contido no inciso II do art. 2º; b) a expressão “com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria”, contida no § 2º do art. 14; c) os arts 18, 19, 20, 21 e 22, com a modulação proposta no parágrafo anterior. Interpreto ainda, “conforme à Constituição” os arts. 5º, 6º e 7º da Lei 9.637/98 e o inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93, para deles afastar qualquer interpretação excludente da realização de um peculiar proceder competitivo público e objetivo para: a) a qualificação de entidade privada como “organização social”; b) a celebração do impropriamente chamado “contrato de gestão”.

É como voto.



*julgamento pendente de conclusão

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