Por Leonardo Massud
Na última semana aconteceu, em Guarulhos (SP), o julgamento do caso da morte da advogada Mércia Nakashima, pela qual é acusado o ex-namorado, Misael Bispo de Souza. Nada de extraordinário, infelizmente, em alguém ser acusado pelo assassinato de outra pessoa. O que há de novo é a transmissão, ao vivo, do dito julgamento. Está certo isso?
A publicidade é a regra nos julgamentos. Assim diz a Constituição brasileira (artigo 93, IX). É não apenas saudável, mas democrático que o povo possa conhecer o teor das decisões judiciais. Somente a partir desse conhecimento é que é possível exercer o controle da racionalidade do procedimento judicial e de sua conclusão.
Em outras palavras, se não for público o julgamento, não é possível saber se foi respeitada a isonomia (grosso modo, tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais), a legalidade (se a decisão estava fundada na lei), se foi respeitado o direito ao contraditório e à ampla defesa, se não foi baseado em provas ilícitas (tortura, sob ameaça, interceptação clandestina de comunicação).
Além dessas razões, as decisões judiciais não só vinculam as partes envolvidas, mas também se dirigem a todos os cidadãos, que devem respeitá-las.
Ao conhecer o teor da decisão judicial, o cidadão pode observar e sentir a reafirmação da validade do próprio direito envolvido no julgamento.
O sigilo é exceção, que fica reservado aos casos em que a preservação da intimidade se mostra recomendável, se isto não vier a comprometer o interesse público.
Apesar de todas essas razões acima, é preciso distinguir publicidade dos julgamentos de espetáculo.
Não há nenhuma justificativa válida para que o Poder Judiciário tenha transformado o julgamento de um caso específico em verdadeira novela televisiva para ser avidamente consumida pela imprensa e pelas pessoas em geral. O julgamento é, sim, público, sendo assegurado, aos cidadãos em geral, assento na plateia do Tribunal do Júri. Que o povo tenha acesso ao julgamento é, como já dito, salutar. A sua transmissão, ao vivo, porém, fere vários princípios constitucionais e da administração pública.
Primeiramente, a transmissão acessível a um número astronômico de pessoas – não só àquelas que verão ao vivo, mas as que assistirão depois, graças à eternização das imagens provocadas pela internet – fere o princípio constitucional da dignidade das pessoas envolvidas no julgamento (réu, testemunhas, jurados etc.).
Por outro lado, a autorização do juiz que preside o julgamento caracteriza-se como ato administrativo e não ato de jurisdição, uma vez que não interfere – ao menos diretamente – no deslinde da causa. Enquanto tal, ou seja, como ato administrativo que é, fere os princípios de direito administrativo, tais como o da proporcionalidade (discrepância entre o ganho do interesse público com a transmissão versus a excessiva exposição das pessoas), da impessoalidade (escolha casuística deste julgamento e não outro: possivelmente a morte de uma pessoa de outras condições sociais, culturais e econômicas não despertasse no povo, na mídia e no juiz tanto interesse em ver o julgamento transmitido em larga escala) e da finalidade (a publicidade já estava garantida pelo acesso à futura decisão e pelo acesso do público à plateia).
Poder-se-ia argumentar que, se o Supremo Tribunal Federal transmite seus julgamentos ao vivo, por que não um julgamento de primeira instância? Bem o STF julga, na esmagadora maioria dos casos, questões de natureza constitucional, cujos efeitos, vinculantes ou não, interessam a todos não só naquela causa, como em outras.
Mas e a Ação Penal 470, no que difere do julgamento do caso do homicídio mencionado? Não há realmente uma diferença ontológica em se julgar crimes numa Comarca qualquer ou no Supremo. Mas há distinções formais importantes. Primeiro, a transmissão do julgamento da AP 470 não foi casuística. Todos os dias o público tem acesso, na internet ou na televisão, aos julgamentos do STF. A causa só foi julgada no STF pela prerrogativa de função. Que função? Função pública de deputados federais, o que desperta o interesse público para muito além de uma comunidade ou de uma Comarca. Isso não quer dizer que não se possa avaliar, criticamente, se não houve, tanto ali quanto aqui, a espetacularização da Justiça.
Seja como for, se nada for feito a esse respeito, este será o primeiro episódio de um deplorável seriado.
Leonardo Massud é mestre, professor de Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, membro do Conselho de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil (Secção São Paulo) e sócio do escritório Massud e Sarcedo Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 24 de março de 2013
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