Dar
 pouca preocupação para o futuro distante parece ser um dilema eterno do
 ser humano. John Maynard Keynes já afirmava que “a longo prazo, todos 
estaremos mortos”. E não há nada tão distante no mundo empresarial como o
 fim de um contrato de concessão ou permissão de serviço público, 
instrumento jurídico contratual que ultrapassa décadas.
Mas a 
regra é que as discussões sobre o fim dos contratos só se cristalizam 
quando o advento do termo está próximo. E essa pouca preocupação legal 
não é uma exclusividade brasileira: se verificarmos a lei ucraniana de 
concessões (nos artigos 15 e 24), também é possível extrair essa mesma 
vagueza normativa.
Além de alguns contratos de concessão no setor 
de energia, está chegando ao fim os contratos de concessão no setor de 
transportes — e, graças a Deus, a profecia de Keynes não se realizou e 
estamos aqui vivos debatendo o tema!
Um desses contratos que deve 
trazer discussões interessantes para os próximos meses é o da concessão 
da Ponte Presidente Costa e Silva, a Ponte Rio-Niterói, visto que o 
contrato de concessão da atual concessionária, a Concessionária Ponte 
Rio-Niterói S. A. (controlada por uma holding, o Grupo CCR) 
expirará no final de maio de 2015. O Ministério dos Transportes, atento a
 essa questão, publicou, no começo deste ano, um chamamento público com a
 finalidade de obter estudos de viabilidade para uma nova concessão da 
Ponte por meio de um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). 
Algumas empresas, dentre elas o próprio grupo controlador atual, 
apresentaram as propostas de estudos, e o Ministério dos Transportes 
deverá, em breve, levar a audiência pública a minuta de edital e 
contrato para a licitação da Ponte.
É importante destacar que a 
atual concessionária está estruturada na forma de uma sociedade de 
propósito específico (SPE). Ou seja, com o advento do termo contratual, 
cessa a sua razão jurídica de existir. Considerando que o grupo 
controlador apresentou estudos para a nova modelagem da Ponte — o que já
 serve para externar a sua intenção em participar de uma eventual nova 
concorrência —, o interessante, sob o aspecto jurídico, é a 
possibilidade de haver a extinção da SPE e a criação de uma nova SPE 
pelo mesmo grupo controlador — caso ele se consagre vencedor em uma 
eventual nova licitação. Além das já árduas discussões com relação ao 
término da SPE, poderá haver a hipótese de uma extinção ficta 
da SPE, dado que, na prática, haveria apenas uma mudança formal de SPE. 
Materialmente, teríamos a mesma empresa concessionária explorando o 
serviço já explorado por ela — utilizando-se até mesmo de seu capital 
físico e humano já destinado à operação atual.
Por essa razão, 
pretende-se analisar brevemente os seguintes pontos nas linhas que se 
seguem: i) a questão da reversibilidade da concessão (dos ativos e da 
operação em si); ii) a adjudicação do serviço público a SPE com mesma 
estrutura societária anterior — os mesmos controladores; (iii) eventual 
sucessão trabalhista; (iv) eventual sucessão comercial; (v) indenização 
quanto a investimentos ainda não amortizados.
A principal preocupação da legislação brasileira no fim das concessões é quanto à reversibilidade dos bens, com a ausência de disposições concernentes à reversibilidade operacional.
 O artigo 18, XI, da Lei 8.987/1995 (Lei de Concessões), indica que o 
edital de licitação conterá “as características dos bens reversíveis e 
as condições em que estes serão postos à disposição, nos casos em que 
houver sido extinta a concessão anterior”, sendo, inclusive, uma 
cláusula essencial do contrato de concessão (artigo 23, X, da mesma 
lei).
A mesma lei define que, na extinção da concessão, todos os 
bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos devem retornar ao 
poder concedente, conforme previsão editalícia e contratual. E tal 
assunção do serviço autoriza imediatamente o poder concedente a ocupar e
 utilizar as instalações e os bens reversíveis (artigo 35, parágrafos 1º
 e 3º da Lei de Concessões).
Se analisarmos as Seções XI – Dos 
Casos de Extinção da Concessão, XII – Do Regime dos Bens que Integram a 
Concessão, XIII – Da Cessão de Bens do DNER para a Concessionária, e XIV
 – Da Reversão dos Bens que Integram a Concessão, todas do Contrato de 
Concessão firmado entre União e a concessionária, observaremos os 
seguintes pontos relevantes:
a) Extinta a concessão, os bens são 
revertidos ao DNIT (sucessor do DNER) livres de ônus e encargos, 
inclusive sociais e trabalhistas;
b) Extinta a concessão, há a imediata assunção
 do serviço pelo DNIT, devendo haver os levantamentos, avaliações e 
liquidações necessários. Ato contínuo, revertem gratuita e 
automaticamente para o DNIT todos os bens da concessão, móveis ou 
imóveis, afetados ao serviço público;
c) O DNIT deve antecipar-se à
 extinção da concessão para proceder aos levantamentos necessários para 
fins de determinação do montante de indenização no caso de bens ainda 
não amortizados;
De resto, há a reprodução dos mesmos dispositivos
 legais supramencionados — dado que o Contrato de Concessão foi assinado
 em dezembro de 1994, anterior à Lei de Concessões. Não há, portanto, 
uma ampla disciplina jurídica contratual específica a essas questões de 
reversibilidade operacional, e existe uma rarefeita normatização para a 
reversibilidade de bens, conforme exposto pelos dispositivos acima 
mencionados.
É que, na verdade, só faz sentido essa assunção 
imediata de bens e direitos no caso de haver o início da exploração por 
parte do DNIT, ainda que temporária, do serviço público em questão — tal
 como ocorreu no caso da extinção dos contratos no estado do Rio Grande 
do Sul. O chamamento público do PMI no presente caso demonstra que essa 
hipótese não está nos planos do Ministério dos Transportes.
Logo, 
partindo dessa premissa, faria todo sentido estabelecer como termo 
inicial da concessão D+1 em relação ao termo final, hipótese em que, às 
23h59, o serviço público ainda seria operado pela concessionária 
anterior, e, à meia noite do dia seguinte, passaria automaticamente a 
ser explorado pela nova concessionária.
Nesse caso, o DNIT poderia
 celebrar um único “termo de devolução e entrega” juntamente com a 
antiga e a nova SPE, operando-se a imediata devolução do serviço pela 
antiga concessionária e sua assunção pelo DNIT e, ato contínuo, a 
transferência e entrega dos bens e responsabilidades pela exploração à 
nova SPE. Porém, para que essa possibilidade possa ser concretizada, é 
imperioso que a licitação já esteja adjudicada, homologada, e o contrato
 assinado antes do advento do termo contratual, sob pena de não ser 
possível juridicamente se operar essa engenharia contratual.
Caso a
 assinatura seja posterior ao termo final do contrato, será necessário 
que o DNIT primeiro assuma o serviço — já que essa assunção se opera 
automaticamente com o advento do termo final do contrato — para daí 
poder transferi-lo à nova SPE. Ter o contrato assinado antes do advento 
do termo contratual deve, portanto, ser uma das prioridades para o 
Ministério dos Transportes, o que traria inegáveis ganhos procedimentais
 nessa nova concessão.
E, convém ressaltar, essa assinatura teria 
que se dar em um prazo consideravelmente anterior ao termo contratual. 
Isso porque talvez seja necessário o estabelecimento de uma espécie de 
“equipe de transição”, tal como ocorre na Administração Pública com a 
mudança de governos, a ser composta por membros do DNIT, da 
ex-concessionária e da nova concessionária, a fim de que a nova 
concessionária possa receber o serviço da concessionária anterior sem 
que haja a sua interrupção.
Seria um ganho meramente operacional, 
porquanto, nesse caso, não se “vira a chave”: a concessão continua 
“ligada”. No caso de o mesmo grupo controlador vencer a licitação, essa 
transição nesses moldes deverá ser ainda menos complicada para a nova 
SPE (na prática, ela “transferiria” o serviço para ela mesma), o que lhe
 poderia representar uma vantagem operacional e, por conseguinte, 
influenciar na elaboração da sua proposta econômica para a licitação.
Já
 na hipótese de a SPE assumir o serviço em data diferente de D+1 em 
relação ao termo final, a concessionária anterior terá que “virar a 
chave” e entregá-la ao DNIT, “desligando” a concessão e passando o 
serviço público a ter imediatamente exploração pública, estando sob 
responsabilidade do DNIT. Será necessário que o DNIT entregue a “chave”,
 posteriormente, para a nova concessionária. E, nesse caso, ainda que o 
mesmo grupo controlador vença a licitação, a dificuldade procedimental 
será a mesma, não representando vantagem operacional alguma, já que não 
haverá a figura da “transferência para si mesmo”.
É possível 
reparar que essa problemática quanto à reversibilidade operacional 
também se estende a direitos e obrigações emergentes da concessão. Uma 
questão é afeta à esfera trabalhista: o que fazer com todos os 
empregados da atual concessionária? Rescindir todos os contratos sem 
justa causa por conta da extinção da SPE? A ocorrência da chamada 
“sucessão trabalhista” não ocorre automaticamente nesse caso, visto que 
os artigos 10 e 448 da CLT apenas se referem à mudança de propriedade ou
 estrutura jurídica da empresa. No caso em questão, não há a mudança da 
estrutura jurídica, mas sim o surgimento de uma nova empresa (SPE), e a 
extinção da atual que vem explorando o serviço.
Já no caso de 
surgimento de uma SPE por parte do mesmo grupo controlador, a discussão 
da sucessão trabalhista poderia emergir, sobretudo por parte de órgãos 
de controle das relações de trabalho. Faria sentido em a SPE atual 
demitir todos os empregados para recontratá-los? Sob o aspecto da lógica
 jurídica do instituto da concessão e manutenção da isonomia entre os 
participantes, sim. A ocorrência da sucessão trabalhista representaria 
uma inegável vantagem competitiva ao grupo controlador que se mantivesse
 na exploração da concessão por meio da adjudicação a uma nova SPE — 
eliminaria boa parte dos custos de transação envolvidos com o capital 
humano. Entretanto, se integrarmos o problema com a seara trabalhista, a
 questão não é de simples solução pelo seu elevado impacto social — 
afinal, é uma questão que envolverá milhares de empregados.
A 
discussão da sucessão poderia inclusive atingir uma SPE controlada por 
grupo diverso do que explora atualmente a infraestrutura e o serviço 
público, prejudicando a competitividade de outros players. 
Atento a essa questão social, seria possível o edital e contrato da nova
 concessão obrigar a nova SPE a assumir o capital humano da SPE anterior
 — ao menos aquele “afetado” diretamente à operação, como os 
arrecadadores de pedágio, e os motoristas de viaturas de inspeção e 
ambulâncias? Poderiam eventuais interessados impugnar um item na minuta 
do edital e do contrato que contenha tal obrigação, sob o argumento de 
que isso representaria uma vantagem competitiva ao atual grupo 
controlador, o qual detém hidden information sobre o seu 
próprio capital humano, acarretando a temida assimetria de informações 
da teoria dos leilões? Por outro lado, a formação de uma equipe de 
transição poderia representar um mecanismo de screening na concessão, mitigando essa assimetria?
E
 nas questões referentes à sucessão comercial? A princípio, valeria o 
mesmo raciocínio acima. Em tese, os contratos com terceirizados deveriam
 ser encerrados, já que estariam limitados ao prazo da concessão — o 
máximo da liberdade de subcontratar da concessionária é dependente do 
prazo da outorga da exploração do serviço público. Essa questão pode ser
 mais simples no caso das concessões rodoviárias em andamento; contudo, 
em concessões aeroportuárias, a possibilidade de exploração comercial de
 áreas no complexo aeroportuário, com a anuência do poder concedente, 
poderia ensejar contratos de exploração de espaço com terceiros que 
sejam superiores ao prazo de concessão, a fim de viabilizar 
financeiramente o retorno dos investimentos realizados.
Levando em
 consideração que essa situação hipotética ocorra na concessão da Ponte 
Rio-Niterói, como decorrência do exposto no parágrafo anterior, a nova 
concessionária teria que atuar obrigatoriamente como sucessora desses 
contratos? Poderia a minuta do edital e do contrato obrigar a essa 
sucessão comercial? Isso certamente estaria sujeito a contestações pelos
 grupos empresariais concorrentes do atual grupo controlador?
Outra
 discussão interessante, por derradeiro, é quanto aos bens reversíveis 
ainda não amortizados. O artigo 36 da Lei de Concessões dispõe que a 
reversão far-se-á com a indenização das parcelas dos investimentos 
vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados. Não
 há nenhum dispositivo textual e literal que imponha a indenização 
prévia, como é feito no caso da encampação (artigo 37), embora haja 
referência à forma de pagamento do artigo 36. A interpretação mais 
plausível é que a reversão e indenização caminhem pari passu na
 formalização do ato jurídico: no termo de devolução, são apurados os 
bens não amortizados, definidos o valor da indenização e realizado o seu
 pagamento na conta da SPE a fim de extinguir as obrigações mútuas das 
partes.
No atual contrato de concessão da Ponte, a Cláusula 117 
registra expressamente que a indenização dá-se de forma prévia para os 
bens amortizados. No entanto, em contratos de concessão mais recentes do
 Governo Federal (sobretudo os primeiros da Segunda Etapa de Concessões 
Rodoviárias Federais), a disposição é que a reversão “se fará com o 
pagamento, pela União, das parcelas dos investimentos”, mas não menciona
 se o pagamento é prévio ou posterior à extinção da concessão. Por fim, 
contratos mais recentes da Terceira Etapa incluem cláusulas expressas no
 sentido de que não haverá indenização por bens não amortizados, sendo 
esse um risco assumido pela concessionária na precificação de sua 
proposta.
Porém, seria possível que o novo contrato de concessão 
defina que o novo concessionário deva pagar a indenização ao 
concessionário anterior, previamente à extinção da concessão? Nessa 
hipótese, o pagamento teria que ser uma conditio sine qua non à
 nova SPE para a assunção do serviço — modelagem semelhante ao que vem 
sendo cogitado para MIPs e PMIS quanto aos gastos na sua estruturação e 
modelagem, no sentido de que o vencedor do certame deve reembolsar o 
elaborador dos estudos prévios que deram origem ao projeto. E algumas 
minutas já vêm inscrevendo que o depósito prévio do reembolso dos 
valores é requisito para a assinatura do contrato administrativo.
Contudo,
 como ficaria no caso de uma nova SPE na específica hipótese em que ela 
seja 100% do mesmo grupo controlador? Teria ela uma vantagem competitiva
 em termos contábeis, podendo “abater” o valor de indenização devido à 
antiga SPE na elaboração da proposta para o certame, tornando-a mais 
competitiva que a dos demais licitantes? Poderia haver uma compensação 
de contas, com a ex-SPE abrindo mão do crédito a receber da nova SPE se 
ela for pertencente ao mesmo grupo controlador — visto que seria, na 
prática, um pagamento para si mesmo? Sendo o grupo controlador credor e 
devedor de si próprio, aplicar-se-ia o instituto da confusão disposto no
 artigo 381 do Código Civil?
Em síntese, essa apertada análise 
tentou salientar algumas questões que deverão pautar as discussões 
jurídicas nos próximos meses. Todas essas discussões poderão vir 
disciplinadas na minuta do edital e contrato oportunamente, o que 
representará um desafio aos estudiosos e operadores do direito público, e
 servirá como um importante case para o término das concessões de serviços públicos no Brasil.
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