Cálculo da CIDE gera controvérsia e insegurança jurídica
Um
dos assuntos mais polêmicos relacionados às remessas ao exterior por
pagamento de serviços prestados por residentes estrangeiros é a questão
do montante a ser percebido como base de cálculo da Contribuição de
Intervenção no Domínio Econômico (Cide) e, por consequência, o valor a
ser pago a título de tal contribuição. Em mais um dos embates travados
entre contribuintes e a Receita Federal do Brasil, uma boa notícia
surgiu no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) que parece
definir qual o valor, enfim, que deve ser adotado como base de cálculo
de tal contribuição.
Em mais uma decisão favorável aos
contribuintes, a 4ª Câmara da Terceira Turma Ordinária da Terceira Seção
de Julgamento do Carf, em julgamento no dia 29 de janeiro de 2014,
prolatou o Acórdão 3403-002.702, determinando que o Imposto de Renda
Retido na Fonte (IRRF) incidente sobre as remessas ao exterior para
pagamento de serviços técnicos prestados por residentes no exterior não
deve ser incluído na base de cálculo da Cide, quando o ônus do imposto
for suportado pela fonte pagadora brasileira.
A Cide, instituída
por meio da Lei 10.168, de 29 de dezembro de 2000, é uma contribuição
que incide sobre os pagamentos referentes a contratos envolvendo
licenças de uso ou aquisição de conhecimentos tecnológicos e de
transferência de tecnologia firmados com residentes ou domiciliados no
exterior, bem como sobre os pagamentos ao exterior por royalties
de qualquer natureza e decorrentes de contratos envolvendo serviços
técnicos, de assistência administrativa e semelhantes, prestados por
residentes ou domiciliados no exterior, independentemente de haver
transferência de tecnologia.
Nos termos do artigo 2º, parágrafo 3º
da Lei 10.168/00, a base de cálculo da contribuição corresponde aos
valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a
residentes ou domiciliados no exterior, a cada mês, como remuneração das
obrigações contratadas, sobre a qual deverá ser aplicada a alíquota de
10%.
No que diz respeito ao valor que deve ser entendido por
“remuneração” para fins de incidência da CIDE, reiteradamente a Receita
Federal tem se manifestado no sentido de que esta é o valor total
(bruto) contratado, incluindo-se os valores correspondentes ao IRRF e ao
Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Isto porque, tanto o
IRRF como o ISS são tributos devidos sobre a remuneração a ser recebida
pelo residente estrangeiro, porém devem ser retidos e pagos no Brasil
pelo contratante na qualidade de responsável tributário.
Como
consequência, a Receita Federal entende que caso as partes contratantes
acordem em um valor a ser remetido ao exterior líquido de tributos, o
contratante brasileiro deve promover o reajustamento da base de cálculo
da Cide (gross up), incluindo os valores de IRRF e do ISS, tal como o faz para o cálculo e recolhimento destes últimos tributos.
O
entendimento da RFB decorre de interpretação analógica calcada nas
regras atinentes ao IRRF, especificamente no artigo 5º da Lei nº 4.154,
de 28 de novembro de 1962, o qual determina que “quando a fonte
pagadora assumir o ônus do imposto devido pelo beneficiado, a
importância paga, creditada, empregada, remetida ou entregue, será
considerada como líquida, cabendo o reajustamento do respectivo
rendimento bruto, sobre o qual recairá o tributo”. Tal dispositivo é
fielmente reproduzido pelo artigo 725 do Regulamento do Imposto de
Renda (Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999).
Este
entendimento fazendário vem gerando questionáveis autuações (como esta
decidida favoravelmente aos contribuintes), tendo em vista que, além da
falta de respaldo legal para majorar a base de cálculo via seu
reajustamento, ignora por completo os limites da base de cálculo da
CIDE, acarretando uma exigência ilegal e inconstitucional e, nesta
medida, injusta e confiscatória.
São vários os argumentos contrários ao entendimento da Receita Federal.
Diferentemente
do que ocorre com o IRRF, a legislação pertinente à Cide não detém
qualquer regra que determine o reajustamento da base de cálculo quando a
fonte pagadora assuma o ônus de pagamento dos tributos incidentes sobre
a remuneração. Ao contrário, a Lei 10.168/00 é categórica ao
estabelecer que a base de cálculo será sempre a remuneração do
contratado estrangeiro, sem fazer referência à quaisquer acréscimos.
A
esse respeito, ressaltamos que “remuneração” deve ser entendida como o
valor contratualmente estabelecido a título de contraprestação devida
pelo contratante brasileiro ao contratado estrangeiro em contrapartida
das obrigações contraídas por este (estrangeiro) no âmbito de um dos
contratos internacionais sujeitos à Cide.
Nesta linha de
raciocínio, o fato das partes acordarem quem irá assumir o ônus
financeiro do IRRF e do ISS não modifica a remuneração pactuada.
Rememoramos que, dentre as diversas funções da base de cálculo dos
tributos, esta deve representar uma grandeza valorativa do fato que se
pretende tributar. Com efeito, quando da instituição de um tributo, ao
legislador infraconstitucional cabe selecionar um aspecto dimensível do
núcleo da incidência para eleger como base de cálculo, sendo tal
prerrogativa limitada aos contornos do fato que se pretende tributar[1].
Nesse
sentido, com relação à Cide, considerando que sua materialidade é o
acordo de determinados contratos internacionais (licenças de uso, royalties,
serviços técnicos, entre outros apontados acima), sua base de cálculo
não poderia ser outra senão o valor da remuneração decorrente destes
contratos (contraprestação contratual), sendo esta a dimensão valorativa
do fato tributável (atividade desempenhada no âmbito do contrato).
Justamente por tal razão é que, como visto, a Lei nº 10.168/00
expressamente faz alusão à remuneração como base de cálculo, devendo,
portanto, a exação recair apenas e exclusivamente sobre esta.
Assim,
o fato de a fonte pagadora assumir o ônus do IRRF e do ISS não
significa que o valor da remuneração contratual tenha sido majorado, ao
contrário, quer apenas significar que a remuneração líquida pactuada não
sofreu dilapidação pela carga tributária, uma vez que esta não foi
suportada pelo seu beneficiário.
Dessa forma, pretender que a Cide
recaia sobre valores alheios à efetiva remuneração contratual,
extrapolando a base de cálculo legalmente estipulada para a exação, é
permitir que seja realizada uma tributação confiscatória, contrariando
garantias constitucionais de uma tributação justa, razoável e
proporcional.
Foi neste sentido que bem consignou o Conselheiro
Antonio Carlos Atulim, no voto vencedor do Acórdão 3403-002.702, que o
núcleo da incidência da Cide é justamente a remuneração do fornecedor
domiciliado ou residente no exterior pelas obrigações contraídas, não
havendo qualquer indicação de que a Lei 10.168/00 pretendesse que a Cide
incidisse sobre o IRRF (o mesmo aqui, a nosso ver, aplicável ao ISS)
quando o tomador do serviço, domiciliado no Brasil assumisse o ônus
financeiro deste tributo.
Segundo o Conselheiro, não se pode
presumir que o valor a ser pago ao contratado estrangeiro seja composto
pela remuneração e pelo IRRF, tendo em vista que o que se estipula em
contrato é um único valor a ser pago a título de contraprestação por um
serviço, sendo somente este eleito por lei como base de cálculo da Cide.
Apontou, ainda, que não se pode aplicar para a Cide o raciocínio de que
se o ônus financeiro do IRRF for suportado pela fonte pagadora, o
pagamento efetivo seria maior do que a importância líquida remetida ao
contratado, tendo em vista que se trata de raciocínio econômico que, ao
contrário do que ocorre com o IRRF, não foi juridicizado pela legislação
que trata sobre a Cide.
Para melhor elucidar os fundamentos pelos
quais se afastou no julgado em análise o IRRF da base de cálculo da
Cide, trazemos abaixo os seguintes trechos do voto vencedor:
“Nesse
passo, não se pode assumir que o valor a ser pago ao beneficiário no
exterior seja composto pela remuneração do serviço e pelo IRRF. Isto
porque, num primeiro momento, o que existe é a apenas a remuneração
estabelecida em contrato, ou seja, um valor único a ser pago a título de
contraprestação por um bem ou serviço recebido. Somente após o
pagamento, ou melhor, somente após o pagamento se transformar em
rendimento do beneficiário no exterior é que será cabível falar em
incidência de Imposto de Renda. Assim, embora sob o ponto de vista
econômico seja possível sustentar que o valor do IRRF esteja contido no
valor da remuneração do serviço, sob o ponto de vista jurídico o que
existe é apenas a remuneração. E apenas a remuneração estipulada em
contrato foi eleita pela lei como sendo a base de cálculo da CIDE.
(...)
Resumindo:
independente de quem assuma o ônus financeiro pelo recolhimento do
IRRF, a contribuição instituída pelo art. 2º da Lei nº 10.168/00 incide
sobre o valor da remuneração pactuada em contrato, sendo incabível
incluir ou excluir de sua base de cálculo o IRRF incidente sobre o mesmo
fato.”
Em que pese a legalidade de se fazer recair a Cide
tão somente sobre o valor da efetiva remuneração pelos contratos
internacionais, sem a inclusão de quaisquer outros valores alheio a tal
materialidade, tais como o IRRF e o ISS, é certo que a adoção deste
procedimento por parte dos contribuintes levará a retaliações fiscais
por parte da Receita Federal, tal como vem sendo feito atualmente.
Nesse
contexto, o recente Acórdão 3403-002.702 se mostra um importante
precedente para contribuintes que tenham sido questionados pela não
inclusão dos mencionados impostos na base de cálculo da Cide, bem como
para aqueles possuam contratos internacionais sujeitos à tal
contribuição, pois, em que pese dispor apenas sobre a exclusão do IRRF,
não fazendo qualquer menção ao ISS — o qual deve ser afastado pelo mesmo
fundamento —, ratifica a improcedência do entendimento fazendário.
É
fato que a questão é ainda muito polêmica no âmbito do Carf, havendo
diversos precedentes favoráveis ao entendimento da Receita Federal assim
como outros partidários do entendimento dos contribuintes, mas nenhuma
manifestação unificadora da jurisprudência administrativa federal
emanada da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf.
Tal
cenário de instabilidade acaba por colocar o contribuinte em situação de
nítida insegurança jurídica, eis que, se de um lado o seu direito é
cristalino e amparado pela legislação, de outro lado o entendimento da
Receita Federal, apesar de ilegal e incoerente, é deliberadamente
aplicado e, em alguns casos, acaba prevalecendo.
É certo que tal
insegurança acaba por implicar em prejuízos que transcendem os
interesses negociais dos contribuintes e a missão arrecadatória da RFB,
tendo em vista que afeta a contratação de negócios internacionais, sendo
fator desestimulante de investimento estrangeiro no Brasil.
Sim,
pois se pela segurança jurídica se busca uma confiança de que dado
comportamento, de acordo com o direito vigente, seguirá sendo
reconhecido pelo ordenamento jurídico com todos os seus efeitos
jurídicos[2],
mantendo-se a estabilidade jurídica do Estado democrático de direito, a
constante indefinição quanto aos efeitos jurídicos desta conduta — no
presente caso alcance da base de cálculo da Cide — acaba por gerar
incertezas aos contribuintes que não sabem se devem observar as nítidas
disposições legais ou se render à sede arrecadatória do Estado.
De
qualquer forma, espera-se que o Acórdão 3403-002.702 represente um
direcionamento jurisprudencial em favor do bom direito, afastando o
entendimento ilegal da Receita Federal e pacificando a questão. Enquanto
não se sedimenta a discussão, resta aos contribuintes apenas buscar a
defesa de seus direitos, seja preventivamente junto ao Poder Judiciário
ou repressivamente em face de autuações fiscais.
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24ª ed. Saraiva. 2012. p. 401
[2] PANDOLFO, Rafael. Jurisdição constitucional tributária – Reflexos nos processos administrativo e judicial. São Paulo: Noeses, 2012. p. 90
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